terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma ficção (parece até real).

                                      
                                                            Magistratura.   (conto)                               
                                                      
               “Texto de ficção; alguma analogia com fato real será mera coincidência”.

                                          O rapaz era mesmo dotado de uma inteligência privilegiada. Era daqueles a quem se costuma atribuir um alto QI. Nicolas vivia no seio harmonioso de uma família de classe média de Cascadura; mulato, filho de uma mãe branca e de um pai negro. Estudioso além de inteligente. Os cursos fundamental e médio fizera com distinção no Colégio Artes e Instrução, antiga escola suburbana por onde passaram ilustres personagens da cidade do Rio de Janeiro. Na Universidade, na Faculdade Nacional de Direito, sobressaiu-se no estudo das letras jurídicas, francamente elogiado pelos mestres.
                                         Desde menino o Nicolas tinha uma verdadeira obsessão: haveria de ser juiz; dizia para quem quisesse ouvir – “eu vou ser Juiz”. O pai, Camilo, advertia o filho das dificuldades de ingresso na magistratura. Além da natural complexidade do concurso, pesava contra ele a cor, dizia o pai. Era mulato escuro com muita honra, mas, teria que enfrentar o preconceito contra os negros no concurso, ainda que disfarçado.
                                        No Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, como de resto nos demais tribunais, juizes negros são raros e, normalmente, não ascendem à segunda instância, não se tornam nem desembargadores, nem ministros nas instâncias superiores. Ao alerta do pai ele, enfaticamente, respondia
                        - “pai, eu vou enfrentar todas as dificuldades; eu quero ser juiz e vou ser, já me imagino vestindo a toga”.
                                      No primeiro concurso programado pelo Tribunal, após a sua formatura, o Nicolas se inscreveu. Estudou com afinco e, para assegurar-se contra algum risco, freqüentou um curso de atualização em matérias nas quais se julgava menos preparado.
                                    A prova escrita lhe pareceu fácil, tal o preparo que tinha. Conferido o gabarito, errara apenas uma questão cujo valor era meio ponto. A nota máxima era 10 e o Nicolas ficou com 9,5. Era esperar, então, a prova oral e o chamado teste de impressão pessoal. Eufórico Nicolas já se antevia presidindo uma audiência, prolatando uma sentença.
                                    O dia da prova oral, como soe ser sempre, enche-se o salão nobre do Tribunal de interessados e parentes para assistir as provas. A banca de desembargadores e procuradores estava, naquele dia, composta da mais fina flor dos operadores do direito.
                                  É bom que se diga que a prova oral tem sido a oportunidade em que se exerce o preconceito, não só o da cor, mas também da origem do candidato. Diz-se, maldosamente nos corredores do foro, que esses concursos são seletivos, ou seja, neles se selecionam os candidatos que vão perpetuar as castas que compõem os tribunais. Ao exame das listas dos magistrados que aparecem nas revistas dos Tribunais se podem verificar nomes familiares em profusão. Avô Ministro, filho Desembargador, neto juiz, por ai afora.
                                 Nicolas era tão brilhante que superou tudo isto; não foi possível embaraçá-lo, por mais difíceis que fossem as questões que lhe foram propostas pela banca. Diga-se de passagem: houve entre os assistentes uma certa estupefação. “O negro é bom, mesmo”, comentava-se em voz baixa, com admiração. Para a aprovação faltavam, apenas, os testes de impressão pessoal, sempre feitos numa espécie de clausura pelos magistrados examinadores e, sem platéia. Seria a última barreira a ultrapassar pelo rapaz.
                                  Ncolas não passou pelo teste; foi reprovado e, como sempre nesses casos, as razões não foram comunicadas ao examinando   Apenas um dos examinadores aproximou-se dos pais do Nicolas – que o esperavam lá fora da sala - e se disse constrangido pelo resultado; quase como que pedindo desculpas; foi só.
                                  Aquele  foi um dia de consternação para a família do rapaz; o pai e a mãe, que tanto temiam por aquele momento, de tudo fizeram para amenizar a profunda decepção que lhes invadiu. Durante dias inteiros Nicolas se manteve calado, num canto de seu quarto, com o olhar fixo em um ponto indefinível; algumas lágrimas, às vezes, rolavam de seus olhos.
                                 O mulato escuro nunca mais abriu um livro. Depois de algum tempo sumiu da casa dos pais. Camilo o procurou por todos os locais previsíveis em que pudesse estar; não o encontrou. Além da decepção os pais passaram a sofrer a ausência do filho querido. Como ele, os pais, num determinado momento, haviam achado possível o sonho de vê-lo de toga.
                             Alguns anos se passaram. Depois de uma batida policial no Morro de Manguinhos, os jornais anunciaram em manchete: – “Preso o traficante Nick”, e com o subtítulo: “o bandido mais perigoso e mais procurado das favelas do Rio de Janeiro”.
                Camilo ao ver na televisão aquele homem negro não  conteve o choro, abraçado à mãe, viram o filho algemado, ele,  o seu Noclas,   que sonhara um sonho impossível: o de ser juiz.

VHCarmo.

2 comentários:

  1. Queremos comentar com referência à ficção(?) Magistratura: Temos uma filha muito querida, adotiva desde os 9 meses, gordinha, negra e muito estudiosa que, certamente, irá enfrentar o absurdo da raça humana na questão separativista. Com os seus 18 anos agora tentamos sempre fortalecer sua intimidade de ser uma vencedora sem ser uma revanchista. Mas que vai enfrentar uma barra isto vai!!!!

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  2. Meu amigo, cada dia melhor.
    Que Deus o ilumine sempre para nos brindar com textos tão ricos.
    Um favor: envie-me seu e-mail pra que eu possa lhe mandar uma foto.
    betometri@ig.com.br

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