quinta-feira, 10 de junho de 2010

Texto ficcional ( para suavizar o discurso).

                                                                Confidência
(Narrativas da minha terra)
                                                                      
                                      Olha Josias, eu nunca falei daquele acontecimento para ninguém, nunca. Como envolveu a figura do meu pai Moisés que você bem conheceu e que tinha prestígio aqui na Freguesia de Santa Rita da Meia-pataca, sempre evitei contar o que aconteceu. Agora que me aproximo do fim -- ora amigo, já completei 85 anos -- acho que não mais vale a pena conservar este silêncio respeitoso que mantive por tão longo tempo. Nem sei se isto valeu a pena, talvez me doesse passar a outros aquilo que considerava um segredo. De qualquer forma agora ele me pesa e deste peso quero me livrar, pois tenho pra mim que não seria bom enterrá-lo definitivamente com a minha morte. De posse dele você fará o que lhe aprouver depois que eu entregar minha alma a Deus.
                                      - Você há de me perguntar o porquê do meu silêncio até aqui; eu lhe explico: tive receio de constranger e fazer sofrer pessoas ligadas ao fato. Agora me sinto mais livre, pois quase todos morreram e os que ainda restam vivos foram preservados. Veja o que se passou:
                                      - Meu pai era dono da Fazenda do Degredo, nesta Freguesia; a propriedade lhe viera por herança dos meus avós. Ali plantava café, que era a cultura mais lucrativa naquela época. Nasci e cresci em meio aos eitos da plantação. Ali cresceram comigo os meus irmãos mais novos: o Juca e a Marina, sob o manto de proteção de meu pai e de minha mãe, dona Carmela. Tínhamos como horizonte próximo as nossas montanhas em cujas encostas vicejavam os arbustos do café, com suas folhas verdes, ponteados pelos frutos vermelhos. Na frente da casa grande, caiada de branco, com cinco janelas de folhas inteiras pintadas de azul e varanda, a porta se abria para o extenso pátio de secagem em frente. Eu já era um rapaz, então. Fizera o curso fundamental no grupo escolar da Freguesia e passei a tomar conta da roça, juntamente com meu pai.
                     - "Nunca mais estudei, amigo Josias. Você se foi, virou doutor eu fiquei na lavoura. Não me arrependo. Era o meu destino. Hoje, daqui desse alpendre, contemplo estes pastos nus, por onde pasta nosso gado, e às vezes sonho com o cafezal, parece que ainda estou vendo o balanço cadenciado das folhas verdes dos arbustos enfileirados morro acima, tocados pela brisa constante que soprava tangenciando o espelho da água do ribeirão Capivara, lá embaixo.
                           "Meu pai, Moisés, era homem da roça, mas sensível, criado na Fazenda do Degredo onde nasceu e morreu, como lhe disse, jamais se embruteceu naquela rude lida. Tinha uma invulgar coragem e forças físicas, atirando-se às tarefas mais pesadas, da colheita e, parecendo se deleitar com o rolar dos grãos no grande pátio de secagem. Ele suava comigo e os empregados, sob o sol e, às vezes, na noite entrada".
                            "Acostumou-nos, porém, às suas ausência periódicas. Assim, sem aviso e sem que se percebesse seus preparativos, num belo dia, geralmente pelo outono, após a colheita e o ensaque dos grãos e de maneira repentina, amanhecia com sua bagagem pronta, beijava o rosto da minha mãe, afagava a cabeça dos filhos e se encaminhava pela estrada na direção do Rio Pomba. Partia para um destino por nós desconhecido".
                               "Na primavera, quando os frutos começavam a amadurecer vermelhando-se, sem qualquer aviso, ele chegava de volta à Fazenda. Trazia pequenos presentes para todos e roupas; perfumes e bijuterias para minha mãe que se enchia de emoção, risos e felicidade. Meu pai também aparentava estar feliz por regressar. Não dava qualquer explicação para sua ausência; era uma estranha rotina. Eu não tinha coragem de me manifestar ou de fazer perguntas. Minha mãe se mantinha reservada e jamais comentava. A vida prosseguia. Na minha cabeça eu achava sempre que cada uma delas seria a sua última viagem. Ele, simplesmente, se mantinha calado. A sua ausência causava a nos todos uma certa tristeza; minha mãe fazia tudo para que a gente não percebesse seu indisfarçável sofrimento. Mulher forte tocava comigo a lides da roça. A certeza da volta do pai nos consolava.       Era estranho o procedimento da minha mãe: não lamentava a partida e se alegrava com a volta".
                     "-Josias, quando eu completei 30 anos e já estava casado com a Marília, resolvi que deveria desvendar o mistério das ausências do meu pai. O Maneco, agente da estação da estrada de ferro, se recusou a dizer-me se lhe vendia bilhetes; negava mesmo com veemência saber para onde ele se dirigia. Era um direito dele; eu não insistia. Andei indagando daqui e dali e acabei desistindo.
                       "No fim do verão de 1946, numa tarde calorenta, lá vinha o Murilo de Barros, pela Rua de Baixo, no centro da Vila, montado no seu inseparável cavalo baio. Ao me avistar acenou para que eu parasse; precisava falar comigo, gritou'..
                                   –Você, Josias, conheceu o Murilo: tipo miudinho de cabelo de fogo, filho do antigo curandeiro da Freguesia, o Seu Ricardo de Barros. Achei estranho abordar-me. Saltou lépido da cela ao chão e fomos, os dois, a um canto da calçada"
                             "-Precisava mesmo encontrar você; foi dizendo, aguçando minha curiosidade.
                            "-Olha rapaz, estou chegando de São Felix, onde fui negociar um gado; uns garrotes para engorda lá que os campos aqui na Lavra andam secos. Mas, eu quero mesmo é falar-lhe do seu Moisés.
"Do meu pai? – “É, de seu velho”.
Murilo começou num tom assim meio reservado:
-“ passando pelo centro da Vila de São Felix, a uma certa distância, vi seu pai, seu Moisés; estava acompanhado de uma senhora e de dois meninos. Achei estranho e evitei que ele me visse. Perguntei ao Fazendeiro que ficou lá com meus garrotes se conhecia aquele homem. Foi logo dizendo: seu Moisés é conhecido de todo mundo aqui em São Felix, tem uma fazendola lá para os lados de Paroquena, mas não sai desta Vila, tem negócios aqui. É um homem de bem, tem dois filhos com Dona Mariquinha, sua mulher, filha de família tradicional de São Felix, os Almeida. O homem tem um costume estranho que as pessoas comentam; ele se ausenta por longos períodos da sua roça e de seus negócios, sumindo no mundo. Depois, sem mais aquela, volta. O pessoal já se habituou com isto. Não estendi o assunto.
                                           -Amigo Josias, você não pode imaginar o que eu senti ali, naquele instante. O Murilo até ficou preocupado, pois tive uma ligeira tonteira e ele me amparou. Depois quis me dizer mais alguma coisa, mas eu não quis ouvir. O velho estava ausente, àquela altura.
Meu pai chegou, logo após, numa manhã cinzenta na Fazenda do Degredo; despejou dos alforjes as roupas e os presentes de costume. Minha mãe, emotiva, deixou uma lágrima escorrer pelo rosto enquanto se jogava nos braços do velho. Ele beijou meus irmãos, abraçou-me afetuosamente e foi logo indagando sobre as plantações e o gado. Não tive coragem de dizer-lhe do que soubera. Nunca o disse.

As ausências do meu pai se prolongaram ainda por alguns anos.
           "-Você agora, Josias, além de mim, é o único a saber disto, pois o Murilo faleceu e jamais revelou. Minha mãe morreu sem saber, ou se sabia, jamais falou sobre o assunto. Nunca tive coragem de abordá-la. Meus irmãos não sabem que nós temos mais dois irmãos em São Felix, espero lhes contar um dia.
Meu pai faleceu na Fazenda do Degredo, aos 85 anos.
                           "Um homem e uma mulher, desconhecidos na Vila de Santa Rita da Meia-pataca, compareceram aos funerais e ao sepultamento de Moisés no velho cemitério do Mato Dentro, verteram algumas lágrimas e se foram, em silêncio, sem que se lhes soubesse o destino".
                                 " -Amigo Josias, eu me sinto aliviado por lhe contar o acontecido.

VHCarmo (maio de 2009 - do Livro Memórias da Vila do Capivara).

Um comentário:

  1. Ah! meu querido e prezado amigo,
    postar um comentário sobre esse poético passado de alguém(será quem imagino?) é muito mais fantástico e sensível do que esta politica nojenta, que infelizmente existe, é real. Mas em nossas opções, vamos querer mesmo é o Livro Memórias da Vila do Capivara.
    Preferimos o essencial que nunca enxergamos!

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