Algumas
lágrimas.
(conto).
Em um espaço físico
relativamente pequeno, entre o Posto Seis de Copacabana e o Arpoador, em
Ipanema, aparecem nitidamente dois mundos em que se divide a população da
cidade do Rio de Janeiro. Nos edifícios
nobres da Av. Atlântica e das ruas
Joaquim Nabuco e Vieira Souto, residem, em sua maioria, gente da classe média
alta e, até mesmo alguns ricos. Nos morros adjacentes do Cantagalo e
Pavão-pavãozinho vicejam a penúria, os pobres, o tráfico de entorpecente; o
crime.
Aqueles, desde a infância, freqüentam
as boas escolas, têm a oportunidade do lazer.
Os pobres, embora vizinhos, ali nos morros, têm um outro percurso na
vida. Têm de cuidar, desde crianças, da sua sobrevivência e muitas vezes a da
família, aprendendo a conviver no ambiente onde há também gente honesta e
trabalhadora. Lazer mesmo só nas fugas
para a praia, sob a vigilância da polícia, nem sempre amistosa.
O garoto Jeremias, mal aprendeu vagar pelas
ruas, pôs-se a ajudar em casa para prover o sustento da mãe e de
um bebê de colo, o Jesuíno. O pai sumia
no mundo do tráfico de drogas; pouco era
visto por eles. Às vezes aparecia, ao
fim da noite, jurava amor à mulher, metiam-se no quarto onde mal cabia a cama,
transavam; deixava algum dinheiro,
sempre muito pouco, sobre a mesa da salinha do barraco, debaixo de um velho jarro de barro com flores desidratadas, e sumia. Nunca revelava onde vivia, nem mesmo à
mulher Gertrudes. O menino via mal o rosto do pai que
parecia propositadamente esconder na penumbra da noite. Chamava-lhe a atenção, porém, uma cicatriz
arroxeada que lhe corria pelo braço
direito até às costas da mão; de cor era
mulato claro.
Quando Jeremias chegou à idade
de ir à escola, a mãe Gertrudes o matriculou no colégio municipal Castelnouvo,
no Arpoador. O menino adorou, era só descer o Pavãozinho e sentir aquele
cheirinho gostoso do mar e ficar ali pertinho da praia. Escola, pela manhã, e a busca do sustento
após as duas da tarde. Aprendeu a fazer
malabarismos com as bolinhas de tênis nos sinais de trânsito e, com agilidade,
esgueirar-se por entre os carros a recolher as minguadas moedas. Vender balas e salgadinhos, subindo os
ônibus, sacudindo as pencas, enganchando-as nas hastes, pedindo desculpas por
importunar a viagem dos senhores
passageiros, fazendo o discurso da excelência do produto e a vantagem do
preço, não importando em flexionar a moeda;
sempre real.
O menino, no entanto, tinha
facilidade de aprender; de encantar as pessoas; uma inteligência viva. Era, como a mãe, bem pretinho, de rosto fino,
delicado, olhos negros grandes e o seu
sorriso, expondo os dentes branquinhos, irradiava singular simpatia. Recolhia o produto da arte com os seus
malabares, da venda dos confeitos e
salgadinhos, levava-o ao sustento da família.
De noite, à luz tênue da lâmpada oscilante, pendente do teto da salinha
do barraco, estudava e lia. Gostava de ler.
Já no quarto ano primário sabia ler e interpretar. Ler faz sonhar: o Jeremias aprendeu cedo a
sonhar. Queria ser alguém na vida.
Muitas vezes, nas
suas incursões noturnas, o pai ainda o encontrava acordado, debruçado sobre os
livros. Recebia, contrafeito, sobre a cabeça, um afago do homem que, pela
madrugada, se ia sem despedidas, antes de clarear o dia. Aquilo lhe doía bem no peito; não só
por ele, mas também pela mãe e pelo
irmãozinho. Ela recebia o seu homem com
uma resignação e passividade que não conseguia entender e isto lhe causava uma
profunda revolta. Jamais trilharia o
caminho do pai, prometia a si mesmo, com fé.
Contudo não tinha ódio dele.
A idade da responsabilidade chegou
cedo para o Jeremias; ele não fugiu à regra da pobreza das favelas; treze anos
incompletos, deixou o malabarismo, as balas e os salgadinhos; passou a estudar
de noite e arranjou trabalho numa loja de venda de pranchas de
surfe, apetrechos e vestimentas de mergulho, no Arpoador. Ali era a sua terra, ou melhor, a sua praia e
as suas ondas que aprendera a dominar.
Ainda menino aprendeu a surfar com um professor de educação física da
escola municipal, e aprendeu bem; se destacava no meio da molecada do
Pavãozinho. Trabalhando na loja,
restava-lhe pouco tempo para o mar, mas se revelou, por sua coragem e
habilidade no trato das ondas, um bom surfista. Começou a ganhar, seguidamente, disputas que
se promovem nas praias da cidade, usando uma velha prancha. O dono da loja, seu patrão, Adib Abdala, um
libanês mulçumano – homem bom --
resolveu patrociná-lo e franqueou-lhe todos os apetrechos, inclusive as
pranchas. O rapaz passou a disputar as
provas, vestindo a camisa da loja “Na onda do Surfe”. Sobrou, também,
tempo para ele treinar, nos dias em que o mar ficava propício.
O rapaz, seguidamente
vencedor, exibia seus troféus e passou a ser uma atração na loja do árabe, onde
dava conselhos e sugestões aos novatos e trato às pranchas. Seu Adib passou da admiração a um enorme carinho pelo
rapaz que tratava como filho. O moço, por sua vez, fazia crescer a clientela da
loja com a sua popularidade na praia.
Com a melhora de suas condições pôde dar maior conforto à mãe e ao
irmão. Reformou o barraco onde moravam
e já não passavam tantas dificuldades; o Jesuíno foi poupado das ruas. O que lhe causava incômodo, ainda, era as
indesejadas visitas noturnas do pai e a passividade resignada da mãe.
Seu Adib e o Jeremias,
numa manhã de uma terça-feira, pouco antes das 9 horas, de um dia
chuvoso, chegavam ao local para abrir a loja; o patrão metera a chave
e acabara de erguer as duas portas de
aço e, quando iam penetrando o estabelecimento, surgiram frente a eles, três
homens encapuzados e apontando revolveres para suas cabeças. Era um assalto. Um deles pulou o balcão e penetrou o interior da
loja, os outros dois, continuavam a apontar as armas. Queriam dinheiro, jóias, mercadorias e todos
os valores. Seu Adib ensaiou resistência
e um dos bandidos desferiu-lhe uma coronhada na cabeça, o homem girou e caiu
pesadamente sobre o balcão e rolou ao chão, desfalecido. O rapaz se manteve encostado na parede e um
dos assaltantes se aproximou dele, empunhando a arma à altura de seu
rosto. Uma camionete estacionou em frente e os dois bandidos e
o que veio dirigindo o veículo
foram esvaziando o estoque da loja,
levando tudo para o carro. O homem que apontava o revólver para o Jeremias, parecia muito nervoso e o rapaz
reparando nele viu que o
conhecia, apesar do capuz; era o seu pai.
A cicatriz arroxeada estava ali bem sob seus olhos, ia do braço até a
mão que sustentava a arma. Era ele e o pai
também o reconheceu.
“Fica calado, se
descobrem, você tá morto; falou, cochichando
entre os dentes e continuou
a apontar a arma para a cabeça do filho,
até que a operação terminou.
Feita a limpeza,
os bandidos se foram para a camionete. Seu Adib despertou e, ainda meio tonto,
olhou desconsolado para a pequena loja, que tanto amava, praticamente vazia –
levaram quase tudo: a coleção de pranchas, as roupagens e aparelhos de
mergulho, dinheiro e cheques que se encontravam na caixa,
O Jeremias viu o pai
correr para a rua e, por último, entrar no veículo que, com o material roubado,
arrancou bruscamente e se dirigiu para os lados do Posto Seis.
A polícia, como sempre,
chegou atrasada. Perícia, cata de
impressões digitais, fotos e mais fotos.
O rapaz e o patrão foram convidados a ir até a Delegacia. Convite que,
afinal, era mais uma intimação do que um convite. Seu Adib precisava de atendimento médico,
foram conduzidos antes ao hospital do INPS da Rua Jangadeiros. Foi assistido ali por um estagiário e, em
seguida, partiram para a Delegacia no camburão.
No percurso o Jeremias
foi invadido por um grave dilema. Se denunciasse o pai, fatalmente a polícia
iria deduzir que ele facilitara as coisas para os ladrões e que estaria metido
no assalto. O patrão jamais o perdoaria,
por mais que tentasse fazê-lo crer que não tinha nada com aquilo.
. Omitir, pareceu-lhe o melhor
caminho. Se indagava, no entanto, se seria justo proteger o pai criminoso. Por outro lado, denunciá-lo significaria
ter que enfrentar as suspeitas que recairiam sobre ele e não merecia arruinar , sem razão, a amizade do patrão.
Ao chegar na Delegacia os
investigadores passaram a ouvir o patrão e o empregado. Ambos narraram exatamente o que tinham visto
e Jeremias não mencionou o pai.
O tempo passou; a polícia
jamais deslindou o crime. Seu Adib,
velho, cansado e sem filhos, achou por bem transferir o negócio para o Jeremias era um prêmio à sua dedicação.
O rapaz mudou-se com a
família do Pavãozinho, para um pequeno apartamento na Ladeira do Leme bem perto
do Favela Chapéu Mangueira. Nunca mais viu o pai.
Um belo dia, passados alguns anos,
Jeremias viu um desses pasquins que cultuam o crime, estendido na banca de
jornais, exibindo, na primeira página, em manchete: “Morto o bandido da
cicatriz”, expondo a foto do pai estirado numa poça de sangue. “O chefão do bando foi morto com mais três
traficantes numa incursão da polícia na Favela da Rocinha”.
Jeremias chorou, furtivamente, algumas lágrimas.
Victor Hugo do Carmo
– Janeiro 2007. ( Do Livro "Complexo do Alemão &outros contos - RTC Editora).