Este conto, ficção escrita sobre um fato real, embora seus personagens tenham sido criados pelo Autor, pretendeu revelar a ambiência da Vila do Capivara ao fim do século IXX e princípios do século XX com a importância da Igreja Católica e o incipiente jogo político então vigente. A Vila naquele tempo vivia um período de reltiva prosperidade com a lavoura de café.
SÁ CLARA.
Quando o padre Cota morreu de
velhice, depois de mais de 50 anos na
paróquia de São Francisco de Assis da Vila do Capivara, instalou-se na pequena
povoação um clima de expectativa. Quem
viria substituir o velho sacerdote, se indagava. Por algum tempo, para missa dos Domingos,
vinha celebrar o pároco da vizinha Cachoeira
Alegre; para as demais celebrações, batismo, casamento e bênçãos
ou eram adiadas ou dependia do prestígio pessoal do interessado
para convocar um padre de fora. As encomendações dos defuntos, mais das
vezes, eram dispensadas e recitada, apenas, uma oração, puxada por algum membro
da Liga Católica. Tudo isto causava
séria contrariedade aos católicos que,
praticamente, constituíam a quase
totalidade do povo da Vila.
O
vigário era uma referência local assim como o Juiz de Direito. Aliás, a Paróquia e a Comarca já iam
completar cem anos e cogitou-se até,
através do prefeito, Seu Antonino, fazer uma reclamação ou melhor um pedido ao
Bispado da Diocese em Leopoldina para
preencher a falta, ressaltando a necessidade de um pároco nas
comemorações. Passado mais de um ano
do falecimento do padre Cota, aproximando-se o centenário, correu notícia na Vila de que fora nomeado um novo pároco. Soube-se também que era um italiano e que vinha de Cataguazes onde fora vigário de
uma das paróquias daquela cidade. Instalou-se
um alvoroço no meio das Beatas, das
Filhas de Maria e principalmente das velhas da Irmandade do Coração de Jesus e
dos homens da Liga Católica.
Era
preciso preparar uma recepção condigna
ao novo pároco; arrecadar fundos para mandar
limpar a Matriz, dar um jeito na casa e
no salão paroquiais e, quem
sabe, adquirir paramentos novos, pois o
padre Cota, já muito velho, se descuidara da renovação das vestimentas e das
toalhas que cobriam os altares, sem contar a limpeza, que seria necessária, das
imagens dos Santos, inclusive a do Padroeiro. Soube-se afinal -- e a notícia chegou
trazida pelo sacristão Zé Caolha que fora a Leopoldina – que o novo pároco iria chegar dentro de 30 dias. Era preciso correr.
A lembrança deixada pelo padre Cota na Vila
era de um verdadeiro santo e venerável ancião que, além das atividades
religiosas, funcionava como conselheiro familiar e político. Quase nada se fazia ali sem que o velho padre
fosse ouvido. Isto aumentava a
expectativa em torno do novo pároco. O
Prefeito, afinal, foi comunicado.
Chegou carta do Bispo, informando o dia da chegada do novo vigário.
Caia num Sábado e no Domingo ele
já celebraria pela primeira vez a missa
na Matriz. O nome do novo vigário
era Giovani Benedictus e, como já se propagara na Vila, tratava-se de um italiano havia
muito tempo radicado no Brasil. De fato,
o padre viera da Itália ainda adolescente e ingressara no Seminário de Mariana,
estimulado pela religiosidade da mãe
A carta não esclarecia qual o transporte
que o vigário se utilizaria para
chegar. Este pormenor atrapalhou um
pouco o preparo da recepção pois não se
pôde saber, previamente, o exato local onde posicionar
a Lyra, a banda de música que ira tocar quando o novo
pároco penetrasse na Vila. A questão
foi resolvida pelo maestro Zé Messias, músico negro muito respeitado por seus
conhecimentos. Dividir-se-iam: uma parte
dos músicos iria para a estação de estrada de ferro e a outra para entrada da estrada de
Cataguazes.
Embora, às
pressas, tudo foi ultimado a tempo. Bem que as imagens dos Santos não foram lá
tão bem limpas: tirou-se, apenas, a poeira quase secular que as cobria. O dia aprazado chegou, afinal. Desde cedo a Banda de Música dividida se
postou nos dois pontos combinados.
As Irmandades com o seu pessoal devidamente vestido com suas opas, fitas
e insígnias, juntamente com o prefeito, o Delegado de Polícia, vereadores e
demais autoridades se colocaram ao pé da Ladeira que conduz à Matriz. O restante do pessoal se acotovelava atrás do
grupo principal. Lá estavam o Leontino,
negro da cabeleira de algodão, conhecido
andarilho, pois tinha o hábito de ir até a Capital e de lá voltar
seguindo os trilhos da estrada de ferro,
o Januário, mulato meio lunático, que a
molecada perseguia aos gritos pelas ruas e o
Brazinho latoeiro com seu vasto bigode. Era gente de todos os recantos inclusive
vinda das fazendas e dos sítios distantes.
A Vila do Capivara parece que ali estava toda. Muitas pessoas assomavam
das janelas da casas da Ladeira e da Rua do Dó. Por ali o padre haveria de passar.
O
trem misto que vinha de Cataguazes tinha horário de chegada às nove horas da
manhã. Estava tudo pronto antes das
nove. O trem chegou com atraso de 20
minutos e logo que penetrou a plataforma da Estação a
parte da Banda que ali estava, pelo sim ou pelo não, pôs-se a
tocar um dobrado festivo. Parado o comboio, desceram algumas pessoas, inclusive uma mulher bem morena de
meia idade com uma mocinha um pouco mais
clara, desconhecidas no local; pareciam mãe e filha. Nada do Padre. O maestro Messias que palpitara a chegada
pelo trem, vendo-se frustrado, convocou
os músicos a se apressarem e se dirigiram para a estrada a se juntar aos outros que lá estavam.
Eram 11 horas, o sol quente de fim de primavera iluminava a copa das árvores
e os raios desciam filtrados até o chão
de terra batida, quando despontou
por trás da Prefeitura, onde desembocava a estrada na Vila, uma Baratinha Ford preta, levantando o pó do caminho. A Banda de Música, já então completa e regida pelo maestro Messias,
irrompeu com o mesmo dobrado. Era o padre Benedictus que chegava. O
veículo vinha conduzido por um mulato de
cara comprida e dentes muito alvos que se mostravam num sorriso luminoso. O sacerdote vinha ao lado. Teria no máximo
uns quarenta e cinco anos.
Rosto típico de italiano da Calábria,
de ângulos retos, cabelos negros meio caídos sobre a testa larga, nariz afilado. Elegante, metido numa Batina pretinha
reluzente. Viu-se que não esperava
aquela recepção tão calorosa e se mostrou emocionado, esboçando um sorriso
simpático. O carro foi indo bem
devagar pela rua, a banda tocando atrás.
Chegaram juntos ao pé da Ladeira e
ao ver os membros das Irmandades
e aquele povão, cercando o caminho, o padre
mandou parar o auto e desceu se dirigindo às Autoridades ali postadas,
se apresentando. Uma mocinha das Filhas
de Maria adiantando-se trouxe-lhe um buquê
de flores silvestres e, tendo a Banda parado de tocar o dobrado,
os presentes começaram a
entoar um hino religioso, o “Queremos Deus...” acompanhados pelos
instrumentos da Lira.
Depois,
discursou o Prefeito, Seu Antonino, que
expressou a satisfação do Povo da Vila do Capivara pela sua chegada desejando-lhe
felicidades e uma longa
permanência. Falou o Delegado sobre
amenidades e a paz que ali reinava e o
representante da Liga Católica da
importância que representava a sua missão. O padre agradeceu a tudo muito
comovido. O cotejo se dissolveu aos
poucos, o Prefeito subiu ao veículo junto com o pároco e se dirigiram à Casa Paroquial, ao lado da Matriz, onde os
esperavam o sacristão Zé Caolha que iria servir de guia e
mostrar-lhe os próprios da paróquia de que ia tomar posse.
A mulher morena que
descera do trem e a mocinha que com ela vinha se encontraram na plataforma da
estação com a Sá Conceição, moradora
do Mato Dentro. Tomaram um velho auto, a
frete, e se foram com suas malas para o
aquele lugar que abrigava, naquela época,
a gente pobre da Vila
e as mulheres da chamada vida fácil.
As moças Filhas de Maria, acostumadas com
a velha figura do padre Cota
sentiram até uma certa alegria de
ver aquele homem bonito e cheio de vida que acabava de chegar. Às mulheres de meia-idade e
às mais velhas, da Irmandade do
Coração de Jesus, causou um certo
desconforto; lhes parecia que aquele
moço não encarnava a figura respeitável de um pároco. Aos homens, da Liga Católica, a questão pareceu indiferente, pelo
menos naquela ocasião.
Vida que segue. O Padre Benedito -- assim
simplificaram logo o seu nome -- aos poucos foi tomando o seu lugar não só na
paróquia como também na vida da Vila.
Era um homem envolvente. Pregava
bem e, embora com leve sotaque italiano, seus sermões eram
apreciadíssimos. Discorria sobre os
evangelhos e fazia deles ilações bem humoradas e espirituosas. Espírito aberto, era adepto das idéias progressistas em voga naquela
primeira metade do século XX, período marcado pela industrialização do país e o surgimento
organizado da classe operária, e do Partido Comunista. O Padre fazia rodar na sua velha vitrola,
que o acompanhava sempre, as operas italianas e cantava árias inteiras na sua
agradável voz de tenor. Aos poucos foi introduzindo uma forma nova no trato dos
paroquianos. Era gentil, comunicativo e se aproximava das pessoas humildes.
Passou a promover reuniões beneficentes no salão paroquial, não só com
os homens, mas também com as mulheres,
sobretudo , com as moças às quais se
mostrava sempre muito à vontade. Apesar
de tudo, a lembrança do falecido padre
Cota, permanecia forte, principalmente entre as Beatas, na Irmandade do Coração
de Jesus e na velharia da Liga Católica.
A
maledicência do povo da Vila começou a aflorar. Ao Padre Benedito lhes parecia
faltar aquela circunspecção a que estavam habituados no falecido padre
Cota. Para muitos as missas na Matriz
se tornaram festivas demais, pois
o padre arranjara de as acompanhar até com músicas profanas. A sua intimidade com as moças incomodava
àquela gente preconceituosa. A
rapaziada foi atraída para Igreja, pois gostava do jeito moderno do
pároco. Grassou no lugar, porém,
uma desconfiança quanto à fidelidade do padre aos votos de castidade. O pessoal da Liga Católica em sua
maioria fazendeiros e sitiantes -- os mais hipócritas -- se pôs a investigar secretamente a vida
íntima do padre. Julgavam-no, além de mulherengo, propagador
de idéias “estranhas”. Um deles foi até
a Cataguazes a pesquisar a vida pregressa do vigário.
A Nilzinha se pôs a namorar o Juca Bem Bem, freqüentador assíduo do rancho onde morava a
moça. Lá ia jogar a víspora com a rapaziada boêmia. O moço era casado e conhecido como o “ galanteador
das damas”. A situação se complicou,
pois o Juca era o tipo que os hipócritas daquela sociedade atrasada não
toleravam. O namoro parecia não
agradar também ao padre.
De simples rumores, a ligação do pároco com
a Sá Clara e a
Nilzinha passou a ser encarada
com desconfiança. Alguém que se
manteve covardemente no anonimato espalhou a notícia de que o pároco
freqüentava o rancho da Sá Clara pelas madrugadas. Teria sido visto de lá saindo. Apareceu logo
depois um panfleto de autoria também
anônima, colocado nos bancos da Matriz,
antes da missa do Domingo, dizia entre outras coisas que a moral religiosa da Vila estava em
perigo. Instava que o Prefeito deveria
tomar as providências junto ao Bispado, embora não indicasse quais as medidas
pretendidas. Inferia-se, logicamente,
que se cogitava do afastamento do vigário.
O padre
Benedito continuava, no entanto, a captar a simpatia das moças e dos rapazes e de
muito mais gente. A igreja floria. As reuniões se amiudavam e a assistência
social se tornou efetiva. A
opinião sobre o pároco ficou
dividida. A Liga Católica e a
Irmandade do Coração, em sua maioria compostas de pessoas mais velhas,
manifestavam uma indisfarçável má
vontade com o vigário, pois se julgavam os guardiãs da moral da Vila. A gente jovem cada vez gostava mais dele. A
coisa foi-se agravando. De problema
restrito passou a fato importante no lugar.
O vigário
parecia não tomar conhecimento da
situação; ia vivendo sua vida. Comprara um belo cavalo baio, encarregando o
sacristão Zé Caolha de o tratar no pasto de São Francisco. O animal reluzia o pêlo do bom trato e o
padre fazia uma bela figura nele
montado, com arreios e selim revestidos com adornos de prata. Abandonou até a baratinha na
garagem. Diga-se de passagem: se
mostrava um tanto imprudente pois era
visto a cavalgar, de dia, pelas ruas do Mato Dentro. Dizia-se que ia visitar os paroquianos mais
pobres.
Nem bem fizera um
ano da posse do padre na paróquia e a sua situação já estava se tornando
insustentável. A divisão ficou bem
nítida. Os conservadores das Irmandades
se mostravam inconformados com o comportamento do vigário. Era, para eles, demasiado moderno e já não
tinham dúvida de suas ligações com a Sá Clara e a Nilzinha, embora não
apresentassem prova concreta. As Beatas
chegavam a ver na mocinha a cara do
vigário. Avançavam nas suas suspeitas e
já diziam à boca pequena que se tratavam de mulher e filha do padre.
Por mais que
pretendesse fingir que não percebia a situação, o pároco já tinha motivos para se preocupar.
Como sempre soe acontecer
nesses casos, a relação entre as duas
correntes, que assumia um viés político,
veio a pender para a radicalização. Uma comitiva dos conservadores foi ao Prefeito e ao presidente da Câmara; pleiteava
daquelas autoridades interferir
junto ao Bispo para afastar o
padre Benedito da paróquia. A corrente
contrária, ao tomar conhecimento do ocorrido, se organizou em comitiva e se dirigiu às mesmas
autoridades se manifestando pela permanência do padre.
Os anticlericais
cujo núcleo na Vila provinha da imigração italiana, inclusive com um pequeno
número de anarquistas, se reuniam na barbearia do Ribeirinho, um judeu
português muito considerado no lugar.
Seu estabelecimento ficava na Rua Direita ali tomaram uma decisão contraditória:
engrossaram, por unanimidade, a posição dos conservadores. Configurou-se, então, aquilo que
sempre acontece: os extremos se tocaram. Esmeravam-se em explicar sua decisão, mas
não convenciam. Julgavam-se
revolucionários e estavam apoiando a direita
hipócrita; não dava para entender.
Político é
sempre político, mesmo naquele povoado perdido entre as montanhas onde o tempo
escoava manso e vagaroso como o ribeirão capivara que banhava o vale. Nem o presidente da Câmara nem o Prefeito
deram declarado apoio a qualquer das correntes; ficaram encima do muro. “Era preciso conversar. Tomar uma decisão
democrática”. Lembravam que a Vila
ficara muito tempo sem vigário fato que
não podia se repetir. Por
sugestão de um dos vereadores, representante do Distrito de Cisneiros foi combinada uma reunião entre os legisladores, as duas partes e o
Prefeito. Haveriam de chegar a um ponto
comum. A reunião se daria daí a alguns dias,
no próprio plenário da Câmara dos Vereadores na Praça do Foro.
Discussão acalorada e tentativa de acomodação dos políticos. Foi do Prefeito o que parecia uma solução
e, em princípio, as duas partes se
puseram de acordo. Sugeriu o edil fazer
uma votação, mas a consulta seria de modo indireto, ou seja,
os votantes teriam que se manifestar contra
ou a favor da permanência da Sá Clara e
sua filha no Mato Dentro e na Vila do
Capivara. Contra elas poder-se-ia
alegar procedimento escandaloso e
exercício da caftinagem. Uma forma de
não envolver o padre e o bispado. “Ora,
afastadas as mulheres, desapareceria o motivo de tanta celeuma” afirmou o Prefeito.
A solução conquanto violentasse a consciência
de alguns presentes foi, aos poucos, admitida por ambas as
correntes. Não ficou bem claro, qual
seria a fórmula a adotar para obrigar as mulheres a abandonar a Vila. Outra dificuldade se apresentou: era preciso
definir quem teria o direito de
votar. Após mais algum debate chegou-se
a um consenso: votariam, além dos
políticos , os membros das Irmandades
das Filhas de Maria, dos Congregados
Marianos, do Coração de Jesus e da Liga
Católica. Foi lembrada a dificuldade de
se reunir tanta gente. A solução foi logo encontrada, as duas partes
indicariam, cada uma, cinco representantes e junto com os Vereadores e o
Prefeito formariam o colégio votante.
Tudo acertado, exigiu-se de todos manter reserva sobre o acordo.
A votação se daria, no Domingo seguinte. O que,
também, não ficou bem claro é se , na hipótese de vencer a corrente
pró vigário, isto implicaria ou não no
reconhecimento da sua ligação com a Sá
Clara e a Nilzinha. Mais discussão.
Venceu a hipocrisia reinante: neste caso admitir-se-iam as mulheres integradas na vida paroquial e seriam esquecidas as ligações com o pároco. Não se falaria mais no assunto.
O Padre Benedito continuava a se manter
alheio. Se sabia da trama, fingia que
dela não ter conhecimento. Era visto
sempre rodeado dos jovens -- moças e moços-- os cabelos esvoaçantes caindo
descuidados sobre a testa larga. Continuava a cavalgar pelos bairros da Vila o seu ginete baio; a batina recolhida
entre as pernas, a calça de zuarte exposta.
Ia ao Santo Antônio, à Rua do Sapo,
Rua de Baixo e ao Banco Verde. Visitava os Distritos, as Fazendas e
Sítios. Conversava alegremente na porta das lojas da Rua Direita e no boteco do
Benedito. Não deixava de ir ao Mato
Dentro onde, apenas, evitava de ir à noite.
Era uma simpatia só. Inegavelmente
tinha a preferência da maior parte das pessoas. Isto, no entanto, não lhe bastava para o
sucesso da votação secreta que iria definir, de certo modo, o seu destino.
Em lâmina municipal se revelava ali o
jogo duro da direita conservadora e a alegria festiva e irresponsável da esquerda jovem. Doía às moças e rapazes, designados a
votar, que pudesse o vigário ser vítima de
uma traição. Sobretudo não viam
escândalo algum na relação do vigário com a Sá Clara e muito menos com a Nilzinha que era muito
simpática, muito dada e se fizera
integrar ao grupo deles. Afinal nada se
provara e se havia algo era muito escondido.
A Vila
do Capivara, àquela época, ostentava
ainda uma certa prosperidade advinda da
cultura cafeeira. A movimentação da
colheita nas fazendas o embarque do café
nos trens da estrada de ferro produziam um intenso movimento de pessoas, embora
sazonal, inclusive de estranhas ao
lugar, quebrando, às vezes, a tranqüilidade habitual. O Mato Dentro era o local onde muita gente
se reunia, então, as noites de diversão, com a sanfona tocando, a cachaça rolando e as raparigas livres esbanjando
o seu charme, principalmente nas noites dos Sábados para as dos Domingos. Os fazendeiros hipócritas da Liga Católica
se deitavam com suas amantes, esquecidos
da moral que pregavam lá fora.
Instalou-se ali também o assunto máximo da Vila, o destino do padre
Benedito. As “meninas” a serviço do amor manifestavam
sua simpatia pelo padre. A rapaziada
freqüentadora era ligada ao pároco.
Os fazendeiros, hipocritamente, saiam de fino pela noite, sem
defender a sua opinião.
O dia da eleição chegou. Tudo foi feito para despistar os
curiosos. Os escolhidos se reuniram à
noite, quando a Vila já adormecera. Os
votantes se trancaram no velho prédio da Câmara. Aos debates que se prolongaram
até a madrugada seguiu-se a votação. O
dia primaveril vinha raiando quando a comissão apuradora proclamou o resultado. O Padre Benedito vencera. A velharia não se conformou com o
resultado; a rapaziada e as moças vibraram.
Foram levar ao padre o resultado na casa paroquial e daí partiram para o
Mato Dentro que se engalanou em manhã festiva com a Sá Clara e a filha. O Prefeito recusou a impugnação tentada
pelas Irmandades. “O que fora combinado
tinha que ser respeitado”.
A
direita conservadora da Vila, inconformada, começou a maquinar um golpe contra a decisão
democraticamente tomada e a qual se comprometera respeitar. Os vencedores da votação inebriados pela
vitória festejada sequer perceberam as sujas manobras dos adversários. Um fazendeiro da ala mais reacionária, sem
que fosse percebido, se foi para Leopoldina
queixar-se ao Bispo, forçando uma decisão episcopal. Guardião da moral católica e de claras
tendências conservadoras, o Bispo não foi difícil de ser convencido pelo emissário. Demais, as relações do padre com a cúria não
era das melhores. O Bispo decidiu
remover o padre Benedictus da Vila do Capivara. A decisão foi comunicada por meio de
carta, ao estilo pastoral, ao pároco com
cópias ao Prefeito e ao presidente da
Câmara. A moçada que ganhou,mas não
levou, sabendo da infeliz notícia,
organizou passeata —com bandeiras vermelhas e cartazes com dizeres
candentes – e percorreu toda a Vila a
protestar, mas nada adiantou. O Bispo era a autoridade maior nos assuntos
eclesiásticos.
Com
profunda tristeza o padre Benedito se preparou para deixar a Vila. Vendeu o seu belo cavalo baio: arrumou, com a
ajuda do Zé Caolha, seus pertences na
Baratinha e na manhã seguinte daquela em que recebeu a ordem
episcopal, tomou seu veículo para sair do lugar em direção a Cataguazes. Antes quis dar uma volta pelas ruas
para despedir-se de seus amigos que eram muitos.
Notou-se até uma certa tristeza nas pessoas que ficaram neutras na
disputa e reprovavam o golpe sujo dos
conservadores. Quando, por fim se dirigiu à estrada, as
moças, os rapazes e o pessoal do Mato Dentro
seguiram a baratinha, aplaudindo o padre , até quando ela se perdeu
na última curva, levantando o pó da estrada. Muitos chegaram às lágrimas.
O trem misto que ia para Cataguazes tinha
horário de partida da Vila às
quatro horas da tarde. Naquele
dia partiu da Estação com 20 minutos de atraso. Pouca gente subiu ao
comboio. Duas mulheres pegaram o trem,
com suas malas: uma morena, de meia
idade e uma mocinha que pareciam mãe e filha.
Passado pouco tempo
notou-se a ausência da Sá Clara e da
Nilzinha, no Mato Dentro e na Vila de
São Francisco do Capivara.
V. Hugo – Outubro 2003.