quarta-feira, 30 de junho de 2010

Até os tucanos descubrirem um vice pro Caviloso...

                                    SÁ RITA   (Lebranças da infância)
                                                                     (conto)

                             “ Sá Rita ... Sá Rita ... velha mijona”...
Os meninos gritavam direcionando os gritos para o porão do velho casarão abandonado. A antiga construção de pedra e cal ficava entre a casa do único médico da vila, o Dr. Aristeu e a do prefeito, Seu Juca, no topo da Ladeira. A casa de 2 portas e 4 janelas cor de barro, servira no passado de abrigo aos mineradores que de toda parte vinham em busca do ouro de aluvião que aparecera nas vargens do vale da Vila do Capivara. Os homens saiam bem cedo aos magotes e voltavam à tarde com suas enxadas e bateias. Cantavam ao som da sanfona e ao rolar da cachaça, noite adentro. O ouro acabou: poucos enriqueceram e muitos voltaram desiludidos e pobres para onde vieram. A Vila se esvaziou, o casarão ficou abandonado. Servia, às vezes, para comemorações políticas dos partidos vencedores das eleições. Vinha o chope do Rio em barris de madeira, se bebia e comia a fartar-se. Os fogos espocavam. Depois o casarão continuava abandonado. Até hoje não se sabe ao certo como a Sá Rita chegou ao porão. Segundo alguns teria vindo com os mineradores, segundo outros tinha parte como o Demo e se instalara ali a cumprir uma pena. Teria vindo do outro mundo. Mundo este que jamais se sabia explicar onde era. A velha Sá Rita, que não era tão velha assim, devia ter por volta de uns 50 anos, então.
                     “Sá Rita ... Sá Rita ... velha mijona”,
gritavam os meninos quando ela saia do porão. Tinha sempre a cabeça enrolada em trapos vermelhos, usava uma blusa surrada e a saia de tecido de algodão larga que ia até o chão. Descalços os pés gastos, com unhas enormes era o pouco que se via. Mulata, olhos injetados de vermelho era uma figura que assustava. Por que mijona ? Simplesmente por que abria as pernas, alargava a saia e despejava sua mijada em plena rua. A molecada vibrava aos gritos:
                             e  Sá Rrita e ria aquele riso triste...
                                         Era o tempo em que ainda  floriam  árvores e caiam frutos sem interferência do homem, naquela terra distante. O tempo em que os dias eram curtos naquele vale do  Ribeirão Capivara, surgindo tarde no nascente por sobre as montanhas e se indo cedo no poente por traz delas. Era o tempo em que as crianças eram inocentes e sua maldade era aquela:
                          “Sá Rita ... Sá Rita ... velha mijona”.
                                          A velha era motivo de curiosidade de todos, até dos adultos. Para se chegar ao porão onde se abrigava tinha que se descer uma pequena ladeira, por entre as colunas de madeira de sustentação do casarão. Os curiosos iam de pé ante pé para não serem notados a ver o seu refúgio. Eram montes de trapos, um fogão de pedras e latas velhas, uma esteira de vime como cama. Sá Rita ia, toda manhã, buscar sua comida na casa de pobres de São Vicente no alto da Matriz. Nunca falava, só ria. Entregava a lata e ficava esperando que a devolvessem com a comida. Quando saia a buscar o sustento era hora dos moleques persegui-la pelo caminho:
                     “Sá Rita ... Sá Rita ... velha mijona...”
As pedras voavam os meninos se esgueiravam, ela ria. Às vezes alguns eram atingidos.
                                            Os adultos advertiam os meninos -- "não façam isto; coitada da velha'. O mistério da Sá Rita intrigava a todos. O prefeito Seu Juca tentou se aproximar dela, interroga-la. Tudo em vão ela apenas ria e era uma riso triste. Um rosto sulcado de rugas prematuras. Para ele, a bem da verdade, chegou a pronunciar alguns nomes soltos, sem nexo. Eram nomes de pessoas. O Dr. Aristeu, vizinho do casarão um dos poucos que lucrou com a mineração, se incomodava com a presença da velha tão perto de sua casa. A mulher dele, Da. Deolinda chegou a implorar ao prefeito que a retirasse dali. Este que era um homem bom e cristão se enchia de pena da velha e recusou o pedido.
                                          O tempo que então corria lento por entre as montanhas do vale do Capivara, tornara rotina a presença e a vida da Sá Rita que acabou fazendo parte daquele tempo escorrido e do cotidiano de todos. Só não cansava os moleques que perseguiam a pobre da velha:
                                             “ Sá Rita... Sá Rita ... velha mijona ...”
                                            O tempo, embora lento, passou. Um belo dia a velha não apareceu na casa dos pobres de São Vicente para apanhar a comida. Causou estranheza. No outro dia também. O Dr. Artur da janela dos fundos da casa dele via o refugio da velha e notou que ela em pleno dia continuava deitada. Chamou o prefeito e juntos foram até o porão, com todo o cuidado ver o que estava acontecendo. A velha deitada na esteira imunda gemia baixinho. O médico se acercou, dela, tocou-lhe as faces e constatou a febre. Ela já não ria. Era preciso remove-la para um lugar decente e trata-la. Levaram-na para o abrigo dos pobres. Já não andava foi carregada. Os moleques fizeram um silêncio respeitoso enquanto ela passava. Foi medicada. Estava com uma pneumonia dupla e enfraquecida. Não perdera totalmente a razão e no seu delírio de febre chamava por
- Adélia, minha filha!.. Joãozinho não me abandone. Clara, Clara o que eu te fiz?
                           Passaram-se mais uns dias  no  tempo arrastado da vila do Capivara, a velha Sá Rita morreu. Ia ser enterrada como indigente no velho cemitério do Mato Dentro. O prefeito, homem bom e cristão, quis dar-lhe enterro decente. Mandou fazer a urna funerária; pediu ao Padre Benedito para encomendar o corpo e mandar tocar os sinos de finados.
                          Na matriz o esquife foi colocado frente ao altar e o padre começou a cerimônia. De repente os moleques apareceram e, compungidos, entoaram:

                                 “Sá Rita ... Sá Rita a gente te ama”...

No esquife aberto para a encomenda, a Sá Rita, ao invés de atirar pedras, parecia sorrir.
              Os sinos dobraram por ela. Mas nunca se soube de onde ela veio e como parou na Vila do Capivara.

VHCarmo.:  do Livro Memórias da Vila do Capivara.





2 comentários:

  1. Muito bonito. Fatos como esse merecem registros, pois não acontecerão mais. São coisas de um mundo pós-industrial e pré-globalização numa transição para algo que não sabemos se será melhor ou pior.
    M. Jansen

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  2. A maioria de nós, interioranos, lembramos de uma Sá Rita em nossas vidas. Histórias e estorias que nos remetem a uma coisa tão verdadeira tal qual a canção "eu era feliz e não sabia!"

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