Final de campeonato.
( conto )
O Pontal fica lá no Recreio dos Bandeirantes e é, como se sabe, um dos mais belos lugares desse Rio de Janeiro, ali onde o mar encontra a pedra enorme que fecha duas praias. Foi lá bem perto da pedra histórica do Digué Troin que encontrei, depois de muitos anos, o Amaro. Amaro Matias seu nome todo. O mar todo em balanço, subindo e escorregando sobre as pedras suas espumas brancas, mas a areia era seu caminho.
Amaro era bravo aí no significado mais abrangente da palavra. Branquelo, olhos muito azuis; um rosto vermelho, cara de brigão. Era o goleiro e eu, mediocremente, jogava na quarta-zaga. Comigo o Paulo Gaguinho de lateral direito e o Wilson Rabo de Porco na esquerda; soberano, de líbero, o Ledyr: matava no peito e saía jogando.
A turma gozava o Amaro que se irritava por nada: -“campista, nem fiado nem à vista”- ele não agüentava nem aquela brincadeira ingênua. Saía pro pau; a gente corria e ele atrás até se acalmar. Porém era bom goleiro, isto era.
“E aí Amaro, está me conhecendo ?
Um herói das minhas peladas da juventude estava ali. Cabelos grisalhos, aquela cara vermelha enrugada, os olhos azuis pareciam mais azuis, talvez até pela proximidade do mar. De roupas simples, em bermudas, descalço na areia, empurrava seu carrinho de doces e salgados, a vender na praia. Quando me viu parou, franziu a testa, apertou olhos e me fixou, parecendo reviver o passado e chamando suas lembranças:
“-É claro você era o meu zagueirão”, esboçou um largo sorriso e me abraçou.
Começamos, ali mesmo, a rememorar a nossa trajetória de “peladeiros”. O campista revelava uma memória rica de detalhes. Lembra-se disso ? Lembra-se daquilo ? Fazia-me recordar e desfiava o rosário das nossas vitórias , derrotas e empates mais emocionantes.
“Mas Amaro, e aquele vexame da final de campeonato, no campo do gasômetro?” Provoquei.
“Nem me fale meu zagueiro, nem me fale; aquilo me ficou engasgado até hoje”.
Era a final do campeonato de bairros – o Amaro era bancário; o time da gente era favorito, contra um de Niteroi. Armados, na defesa, com o Ledyr de líbero, a nossa mediocridade técnica supria-se pelo entendimento com ele e o goleiro. A gente fazia uma muralha, o meio de campo com o Toninho saía jogando e o Marinho, um branco miudinho e ligeiro, infernizava a defesa adversária fazendo gols. Assim tínhamos chegado àquela final.
Os jogadores de Niterói desembarcaram no campo do gasômetro num micro-ônibus e com eles, no msmo veículo, chegou o trio de arbitragem. O Amaro vendo aquilo já começou a se irritar.
“Esses caras trouxeram o juiz, isto vai dar merda”.
Eu mesmo tratei de acalmá-lo:
“Vai devagar campista, deve ter sido apenas uma carona”.
O jogo começou: bola pra cá; bola pra lá, o goleirão a orientar, o Ledyr a esbanjar sua técnica, eu e os laterais dando tudo. Podíamos ter saltado na frente do placar, se não fora um impedimento inexistente marcado pela arbitragem. O Amaro ficou possesso. A gente o conseguiu acalmar. Terminou zero a zero o primeiro tempo
Mal começou o segundo tempo nosso goleirão saiu tranqüilo numa bola alta, sobre a cabeça do atacante adversário, sem tocá-lo. O juízinho apontou pra marca do pênalti. O Amaro, em princípio, não entendeu, pensou que era falta do atacante. Quando o homem colocou a bola na marca, ele partiu pra cima dele. Foi aquele agarra, agarra. O tempo fechou. “Goleiro expulso”, bradou o bandeirinha, avisando a decisão do juiz que fugiu pro meio do campo. Sai, não sa ! tivemos que levar, à força, o Amaro para vestiário, mas ele foi jurando o árbitro: “eu te encontro um dia malandro...”. gritava.
Para resumir a débâcle, passamos a jogar com 10 homens; o Marinho pequenino e valente foi pro gol, ficamos sem atacante -- não havia àquela época substituições -- perdemos feio, 5x0.
O Amaro, tomado banho, esbravejava atrás da linha de fundo. Terminado o jogo, o árbitro escafedeu-se e com ele os bandeirinhas, até hoje não se sabe como.
O time todo saiu arrasado do campo do gasômetro; a revolta contra o árbitro era geral, principalmente do campista.
Lembrei ao Amaro aquela história e notei que ele ficou emocionado. Virou-se, em seguida, sentando-se numa cadeira de plástico, ali perto:
“Meu zagueirão, aquele jogo mudou o curso da minha vida”.
E passou a contar, entre triste e emocionado:
“Hoje eu já me amansei, mas sofri muito com o meu mau gênio. O diabo é que aquele juizinho atrevido jamais saiu da minha cabeça. Passados uns três anos daquele jogo o encontrei na rua. No centro da cidade; esquina da Rua Teófilo Otoni com a Avenida Rio Branco. Perguntei, se ele se lembrava de mim; respondeu que não. “Mas eu não me esqueço de você; disse já nervoso e desferi uma “porrada” na cara do homem que rodopiou e caiu’
. “Chegou gente de todos os lados e um policial. Fui em cana. Preso em flagrante, passei 2 semanas na cadeia de onde saí por força de um hábeas corpus, para responder o processo em liberdade. Depois de mais de 3 anos fui julgado e condenado por lesões corporais e fiquei mais seis meses na prisão. Perdi meu emprego no banco, minha mulher me abandonou e hoje vivo de vender doces e salgados aqui na praia. Minha única fortuna é este carrinho aí, sem falar, naturalmente, dessa marginália que aqui vive também, pois neles encontrei verdadeiros amigos”.
Notei correr, mansamente, pelos cantos dos olhos azuis do campista, algumas lágrimas.
VHCarmo - agosto de 2007.
A SILMA ROUSSEFF ARRASOU NA TV BRASIL. O Serra continua desesperado.