segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Algo mais: um conto do livro "Memórias da Vila do Capivara".

                                        A velha Maricota.


                         Quando a gente é jovem se crê eterna. A morte, tão longe, nem é vislumbrada, nem conta como realidade. O velho, para os jovens, ou é algo de indiferente ou, quando revela alguma excentricidade, passa ser motivo de graça e até, às vezes, de chacota. A velha Maricota já ultrapassara os 90 anos. Era até bem conservada. Mulata, magricela, cabelos crespos já embranquecidos e cara fina Vestia-se sempre com vestidos longos que lhe iam aos pés. Dizia-se na Vila do Capivara que São Pedro a havia esquecido de chamar e que somente após uma revisão da lista do Santo ela seria convocada para ir pro céu. A velhinha, embora fosse desenvolta no caminhar, tinha como particularidade o fato de andar curvada, talvez ao peso da idade.
Era viúva de dois maridos, mãe de muitos filhos e tinha uma profusão de netos e bisnetos; a maior parte deles vivia ali na Vila do Capivara ou mourejavam nas roças da redondeza.
A velha morava com uma filha, também já velha, no bairro de Santo Antônio, bem perto da capela. Na rua que até hoje é conhecida como Rua da Maricota. Ela pertencia a Irmandade do Coração de Jesus, da Matriz de São Francisco, era sua devoção. Ostentava com orgulho a fita vermelha em torno do pescoço, a cair pelo peito. Jamais dela se despia. Por andar curvada, a medalha presa na fita, lhe oscilava à frente do corpo.
                              A Maricota falava pelos cotovelos. A molecada se acercava dela para ouvi-la, esperando sempre pelas obscenidades que ele dizia mansamente a dar risadas. A garotada aprendia com ela os mistérios da vida que os outros escondiam. A velha desmistificava a cegonha,e como fora parteira, contava com minúcias como nasciam os bebês e como eram feitos. Falava do amor com detalhes picantes. A garotada vibrava. De repente aparecia a sua filha e retirava delicadamente a mãe de seu público mirim, sempre sob os protestos da velha e de seu público. Mas, ninguém lhe tirava a fita vermelha do pescoço – isto jamais – e lá ia ela a balançar a medalha do Coração de Jesus em frente ao corpo curvado.
Tentaram afastá-la da Irmandade. Não adiantou; lá estava a Maricota na Missa, diariamente, em meio às irmãs, com a fita vermelha e a medalha. Porém uma coisa envergonhava ainda mais os parentes da velha; como não conseguiam mantê-la presa em casa, ela saia para rua em busca da sua platéia de meninos. Até aí: nada demais, mas quando caminhava a Maricota peidava. Era um rosário de peidos cadenciados. A molecada vibrava ao som irregular dos “ventos” ela sorria e , às vezes, gargalhava. Porém daquilo que os moleques mais gostavam era das histórias eróticas da Maricota. Havia na Vila do Capivara um certo malestar. Naquela época em que os pais escondiam dos meninos os mistérios da vida, vinha a Maricota a escancarar os mais recônditos segredos do sexo. Era demais. Até o pároco da Vila, o padre Preti, um circunspeto italiano, já manifestara o seu incômodo aos parentes da velha. O padre tinha um justificado receio que num belo dia a velha viesse a desfiar seus peidos em plena celebração da Missa.
                           Dizia-se, a boca pequena, que a velha Maricota estava caduca. Porém, quando ela ouvia alguém dizer ou insinuar, ela protestava de forma estranhamente lúcida e veemente. “Os que a achavam maluca eram fariseus; têm medo da verdade”.
                              A velha formou uma geração de jovens daquela Vila distante que cedo se iniciaram naqueles mistérios da vida e do sexo.
                            A Maricota ultrapassou os cem anos. Ao fim já não andava mais pelas ruas, se limitava dar suas “aulas” no Santo Antônio, na porta de casa. A filha dela tentava afastar a inconveniente platéia da molecada, mas os meninos insistiam. A Maricota, aí então caduca, se limitava a repetir, monotonamente, as mesmas lições, a peidar, a rir e gargalhar.
                            Quando a velhinha foi afinal chamada por São Pedro,numa tardia revisão de sua lista de convocação celeste – aos cento e cinco anos – parece que houve um alívio para aquela elite hipócrita da Vila do Capivara. Os meninos, porém, choraram por muito tempo a sua falta.

VHCarmo.

(Do livro Memórias da Vila do Capivara).

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