A primavera era quando chegavam os ciganos. As flores enfeitavam a margem do ribeirão e os nômades traziam alegria e, também, uma certa melancolia. Suas músicas pela noite a dentro revelavam uma remota saudade, evocando origens perdidas no tempo.
Os ciganos do Capivara.
Conto
A
pequena cidade de Palma em Minas Gerais que fica bem junto à divisa do Estado
do Rio, era ainda o Curato de Santa Rita da Meia- pataca da Diocese de Leopoldina ainda no século XIX quando, nas
margens do Ribeirão Capivara, já acampavam periodicamente os ciganos. Mal entrada a primavera eles chegavam.
Os meninos, e até mesmo os adultos do povoado,
ao despontar as primeiras flores silvestres nas bordas do córrego e quando as
folhas e galhos das árvores se punham a balançar ao vento agradável e morno que
espantava o inverno, já se mostravam
ansiosos esperando a chegada dos
ciganos.
A expectativa dos habitantes da Vila era,
assim, um misto de ansiedade e alegria
que iria causar o colorido das vestes dos nômades, a difusão dos sons nos
falatórios das mulheres, da algazarra dos meninos ciganos e a música de seus
instrumentos rústicos. Com eles chegava também a preocupação sobre estórias e
mitos correntes de males – nunca bem
definidos - que eles ciganos poderiam trazer, embora nunca se tivessem notícias que os trouxera.
Os
nômades vinham como numa uma procissão: os homens de calças largas de pano fino, blusas
de seda com as cabeças envoltas em lenços vermelhos, dentes
de ouro; as mulheres com suas saias e cabeleira longas e coloridas, as crianças com
suas vestes multicores. Os carroções com
as tralhas, os cavalos enfeitados com montarias de couro pintadas e encravadas
de prata, puxados pelos cabrestos levantavam
a poeira. Armavam suas tendas de pano grosso cor de barro
e instalavam seus fogões, utensílios e cômodos íntimos, plantando uma pequena
comunidade nas margens do Ribeirão Capivara que corria ali com suas águas limpas e cristalinas. Tudo sobre a
sempre renovada curiosidade, meio distante,
daquela gente da Vila.
Os
ciganos traziam cavalos para vender e, exímios latoeiros, expunham à venda seus
tachos, panelas, canecas e canecões
que soldavam ali mesmo em fornos
improvisados. Plantada a míni vila, se atiravam ao comércio: os homens a negociar
os animais e os utensílios e as mulheres, acompanhados dos filhos pequenos, a
abordar as pessoas pelas ruas da Vila para lhes ler nas mãos a sorte e lhes
prometer sempre a felicidade e, porém muitas vezes, as assustando sob velada
ameaça de algum mal indefinido, se recusada a leitura e o seu ganho. Aos
homens ciganos atribuíam-se maldades, traições e trapaceio nas
transações. Propagava-se que, tão hábeis
a enganar as pessoas, conseguiriam vender cavalos cegos aos mais incautos. O mais grave:
veiculava-se até que eles seriam capazes de “roubar crianças”. Por isso as crianças da
Vila tinham medo dos ciganos. Os meninos
desciam até perto das tendas no Capivara e, ali distantes, ficavam a observar a
movimentação do bando e, quando
descobertos, fugiam em alarido.
Sob
os lampiões de óleo a alumiar as tendas e ao redor da fogueira noturna no
terreiro os ciganos dançavam ao som das sanfonas e entoavam remotas canções
langorosas e ritmadas pelos chocalhos.
Aqueles
nômades, segundo se acreditava, tinham
origem na Europa medieval, provavelmente do leste magiar e teriam vindo ao
Brasil e àquela região, através da
Espanha. Falavam português com sotaque característico da
língua de Servantes
Mal
finda a primavera e principiando o verão, os nômades partiam, seguindo a sua sina. Nunca se soube, ao certo, seu próximo pouso.
Sumiam pela estrada que vai a direção ao Rio Pomba, no distrito de Cisneiros, naquela
mesma procissão, arrastando as suas tralhas. Antes de sair limpavam o terreno que ocuparam e deixavam intactas as
flores e as plantas silvestres das margens do Capivara.
Numa
daquelas visitas dos nômades, dizia-se, que aconteceu um fato cujos detalhes, até hoje, correm de “boca
em boca” na cidade de Palma. Acontecimento, transmitido por antigos habitantes, a sua veracidade não se atesta, mas há, sem dúvida,
muita verossimilhança naquilo que se conta e permanece.
No final das ruas do povoado, num pequeno
sítio no início do caminho que vai para
a divisa da Vila com o Estado do Rio, veio morar, então, uma modesta família de
agricultores. Nunca se soube exatamente de onde viera. Eram os Mitri Occa, gente que passou a mourejar
na roça desde o início do povoamento da Vila do Capivara, nome que o Curato de
Santa Rita da Meia-pataca passou a ter quando o povoado foi consagrado ao padroeiro São Francisco de Assis.
A família Mitri Occa, além dos pais,
seu Epifânio e Dona Isabel, tinha três filhos; o mais velho era Juan Occa, que
estava então com quinze anos e já
trabalhava no eito e se alfabetizara na sala de visitas da Dona
Nenzinha, que era a única escola da
pequena Vila do Capivara.
Daí que, chegando então uma nova primavera e com ela os ciganos
se instalando ali bem perto de onde os Occa mexiam com a terra, o jovem Juan os via
com natural curiosidade. Aos
poucos o rapaz foi se chegando ao
bando; estranhamente não tinha receios de se aproximar. Ia de casa às tendas e voltava, a princípio
por pouco tempo, tempo que se foi alongando.
Num mesmo dia, indo pela manhã, chegou à casa, de volta, já era noite, preocupando os pais.
O verão se aproximava e era a hora de se
irem os ciganos, como de costume.
No dia da partida, o rapaz falou aos pais que iria se despedir dos ciganos que desarmavam as tendas. Juan não voltou, foi-se com o bando. Foi visto, por várias pessoas ao atravessar o
povoado, na procissão dos ciganos.
Os velhos pais de Juan choraram a sua
ausência, mas estranhamente não moveram um palha sequer para reclamá-lo. Nem a
insistência do Delegado de Polícia os
fez mover.
Passado alguns anos e, chegando uma
nova primavera, aquele bando de ciganos
voltou. Montou seu acampamento no local
costumeiro nas margens floridas do Capivara.
Epifânio e Isabel foram caminhando até as
tendas. Em meio ao tumulto da
chegada do bando, um jovem cigano com o
característico lenço vermelho envolvendo a cabeça, a blusa de seda e as calças
largas, correu ao seus braços: era o filho. Os pais do cigano Juan misturavam,
ali naquele terno abraço, e num mesmo pranto, a alegria de reencontrar o filho e
a remota saudade de sua origem nômade perdida no tempo.
VHCarmo.
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