quarta-feira, 18 de abril de 2012

Este escriba foi solicitado por generosos  amigos e frequentadores deste humilde bloguinho a postar, outra vez, o conto "O celibato do padre João".

 Por que não dizê-lo, ele ficou envaidecido por terem gostado da ficção que, como se vê, não se distancia muito da realidade de um tempo em que os costumes religiosos tendiam se misturar com os sentimentos humanos mais animalaços.

O celibato católico, ainda hoje, agita as mentes, questionada a sua permanência em um mundo agitado por questões mais sérias de combate à pobreza e de afirmação de ideias universalistas em que o voto do celibatário se restringe a um contexto mais estreito e personalíssimo de um credo.

Não a toa, que poucos confiam na obediência ao voto de castidade, via de regra imposto ao religioso quando ainda não amadurecido o seu entendimento sobre o difícil comprometimento.   Seria o voto natural ou antinatural?  Justifica-se a desobediência do votante?

Olhem só:

                                         O CELIBATO DO PADRE JOÃO.
                              Desde menino João Antônio apresentava inclinação à instabilidade de comportamento. Então, com 10 anos, se mostrava ligado às coisas do espírito, aí entendidas como uma precoce tendência à religiosidade, talvez provocada pelo ambiente familiar. Como caçula de 5 irmãos, sendo três outros homens, uma irmã e, com a mãe, eram todos ligados à religião católica como membros atuantes das Irmandades do Coração de Jesus e de Maria, exibindo nas missas e demais prédicas religiosas a suas fitas vermelhas, azul e as medalhas.
A Vila de São Felix, no Estado do Rio, interiorana e conservadora onde viviam, induzia à religiosidade, sobretudo como uma forma de inserção no meio social que ocorre nas pequenas comunidades e como uma forma de posicionamento de classe. O pai um pequeno sitiante se dividia entre a roça e a vila..
Aos doze anos João já insistia em fazer a “primeira comunhão” e estranhamente exibia atitudes piedosas, extremando-se em decorar e proferir orações, até complexas, ao levantar pela manhã, nas refeições e ao deitar. À vezes, de joelhos e em voz alta, proferia suas orações, comovendo, por sua precocidade, a mãe devota, dona Djanira. O pai, seu Fortunato, que não era lá muito religioso, embora respeitasse a prática da mulher e dos filhos, achava aquelas atitudes do menino um tanto extemporâneas. A mãe viu logo no adolescente a vocação sacerdotal, Era melhor esperar um pouco que o filho manifestasse sua vontade livremente, opinava o pai.
Prevaleceu a influência materna. O menino, talvez, mais induzido pela mãe do que por seu desejo, passou a manifestar-se como vocacionado ao sacerdócio. Iria ser padre e mirava, como exemplo, o pároco, padre Bendito, com sua figura elegante, esguia, cabelos a esvoaçar, desfilando na vizinha Vila do Capivara, às margens do ribeirão, montado no seu cavalo baio e, mais ainda, ao celebrar os sacramentos, no altar, com as belas vestimentas douradas e de variadas cores da liturgia.
O pai Fortunato, precavido, tentou demover o adolescente da pretensão. Achava que ele estaria movido pelos estímulos da mãe e não pesara devidamente o que representava a carreira eclesiástica. Foi capaz de chamar-lhe a atenção para aquilo que reputava uma questão importante a ser considerada pelo rapazinho. Disse-lhe:
- Olha filho, padre não pode se casar e constituir família.
Não quis falar, diretamente, em voto de celibato, pois o jovem logo se informaria disso e julgou então não ser oportuno.
Não houve quem removesse do adolescente aquilo que a mãe achava ser vocação à vida religiosa.
Para encurtar a narrativa, cumpre dizer que o João Antônio foi para o Seminário, quando completou treze anos.
Com passar dos anos começaram a afluir, naturalmente, no rapaz, os hormônios e, como é comum, nessa época ele sentia, já no Seminário, os apelos masculinos. Sabia que deveria sublimá-los e, no “noviciado”, até um tanto hesitante, firmou, perante, os seus superiores eclesiásticos, com as solenidades costumeiras, os chamados “votos de religiosos”, inclusive o de castidade. Seria um celibatário dali para frente, ele que até então não tinha provado o sabor do sexo.
João Antônio Mendonça se ordenou padre católico aos 22 anos. Era, então, um jovem belo e saudável. Com sua tez morena, alto e forte, olhos cor de mel e cabelos castanhos lisos e fartos, estava pronto para o amor carnal que renunciara.
Padre tão cedo, foi nomeado pároco para a Vila do Capivara em Minas Gerais, na divisa do Rio, bem perto da sua São Felix.
Exposto ao contato diuturno ao sexo oposto, o jovem padre haveria de enfrentar uma dura luta para manter-se fiel aos “votos de castidade”.
Além do questionamento em sua mente confusa, João Antônio via-se cercado, como era natural, pelo assédio das mulheres, principalmente das mocinhas que, entre elas, lamentavam aquilo que achavam “um verdadeiro desperdício”. Um belo rapaz como ele não podia ficar fora do namorico, do amor e de um casamento.
Nelsa Bertolini era uma daquelas mocinhas, nem tão mocinha, pois já ia pelos 20 anos, amadurecendo um belo tipo de mulher feita, morena e, sobretudo, com um rosto formoso, olhos claros e um corpo sensual, delineado por um belo busto e a delicadeza da cintura milimetricamente proporcional à bunda e às pernas bem torneadas. Filha única dos italianos Giulia e Humberto Bertolini, este leiteiro na Vila. A moça era mesmo uma graça, mas, até então, rejeitara vários pretendentes.
Quando padre João Antônio chegou à vila, Nelsa pôs-se a admirar o jovem padre e não soube esconder a sua atração por ele, brotando logo no seu coração uma sensação nova nunca antes sentida. Mostrava-se a ele faceira como sabia fazer com a sua delicada natureza feminina.
Padre João logo que viu Nelsa e sua faceirice sentiu, também, algo estranho: uma sensação que, bem depressa, invadiu a sua mente, o seu coração e fez afluir os seus hormônios masculinos de uma forma nova. Já não dormia sossegado, tinha abluções noturnas e, às vezes, com relutância se punha a masturbar e ver fluir o sêmen inútil, estimulado pelo pensamento voltado para Nelsa.
O questionamento sobre o celibato passou a tomar a mente do jovem padre. Passou a considerar a impropriedade do voto de castidade em si; a ilegitimidade de sua imposição e, mesmo, a sua validade. Considerou que tinha aceitado fazer o voto sem saber, então, de seu verdadeiro alcance e agora passara a considerá-lo, confrontando-o com sua evolução física e a atração que passou a sentir pelas fêmeas. Assim achou questionável a sua submissão ao juramento. Obedecer ou não, foi a questão que passou à sua cogitação.
O voto de castidade não tinha volta, mas o que custaria a ele, João Antônio, a desobediência? se interrogava. Pesava-lhe, por outro lado, considerar a origem divina do voto, fato que logo descartou pois passou a duvidar daqueles padres superiores que o receberam e o testemunharam. Teriam eles legitimidade para impingi-lo e de onde provinha essa legitimidade? se indagava. A resposta a essa indagação, sugeriu que o voto seria imposto pela Igreja de Cristo. Ora, pensou o padre João: a qual a entidade teria conferido à Igreja esse poder de imposição? Andou pesquisando os livros santos; no velho e no novo testamento nada encontrou que a autorizasse. Concluiu, com um certo alívio, que o voto que proferira nada valia, pois, além do mais, não tinha nem origem divina. Lembrou, como definitivo em suas elucubrações, que todos, ou quase todos, os discípulos e apóstolos de Cristo foram casados. Por fim concluiu aliviado que a privação do sexo era antinatural.
Padre João Antônio, livre de questionamentos pessoais, depois desse longo raciocínio, deixou dominar-se pela paixão por Nelsa. Entregou-se sem reserva. Ela, com seu apurado instinto feminino, percebeu e ambos passaram a um mútuo encantamento. Nada é mais forte que o amor de dois jovens, nem mesmo um voto de castidade.
Embora os encontros daqueles jovens fossem inicialmente bem disfarçados e às escondidas, a imprudência filha dileta daqueles que amam e irmã gêmea da vontade de se exibir, revelaram-se aos olhos curiosos, principalmente das beatas da Vila do Capivara. Com a revelação veio a maledicência e o exagero. Ele mirava-se no exemplo do padre Benedito, antigo pároco da vila que, segundo as mesmas beatas, teria mulher e filha, vivendo na bairro do Mato Dentro, local no qual viviam “as meninas da vida livre” e “as amantes”, nem tanto ocultas, de ricos fazendeiros da região.
Nelsa, filha de Humberto que era ateu e que viera de Florença com fama de anarquista, não valorizava um possível impedimento do padre; nem cogitava da questão. A família dele não frequentava a Matriz.

Nelsa e João se atiraram à paixão mútua sem condicionamentos.

Padre João Antônio era um pároco zeloso e não descuidava de seus deveres. A paróquia prosperava e com a assistência social, promovendo contato com as pessoas mais pobres, sustentava o prestígio do padre. Apesar de tudo, o rapaz tinha um alto sentido de amor ao próximo e respeito a Deus. Celebrava com compulsão os ofícios religiosos e era muito simpático a todos paroquianos.
A convivência entre o divino e o profano – se amor fosse de fato profano – não poderia sobreviver tranqüilamente. O amor do jovem padre começou a incomodar à reinante hipocrisia da Vila do Capivara.

Domingo de Páscoa, festa da ressurreição de Cristo e a Vila do Capivara estava em festa. No Sábado de Aleluia correra tudo na forma prescrita nos livros santos, presidida pelo pároco. A missa de páscoa estava programada para as 10 horas da manhã, na Matriz e, meia hora antes, o templo regurgitava de gente vinda de todos os cantos da pequena cidade e da sua zona rural.
O padre João Antônio era esperado com a natural ansiedade do público para iniciar a missa. O pároco tardava. Quase onze horas e não chegara nem à sacristia onde o aguardava o sacristão, seu Justino.
Quem apareceu no templo, causando uma certa estranheza, foi o leiteiro Humberto Bertolini. Foi penetrando pelo interior da nave e, em frente ao altar, pedindo a atenção dos fiéis, sacou um papel e pediu licença para lê-lo e o fez em voz alta, tentando atingir a todos os presentes:
                          “Meu pai, eu e o João Antônio estamos indo embora juntos. O amor que nos liga é mais forte do que tudo. Daremos notícias oportunamente. Nelsa”.
O leiteiro que leu o bilhete, com o seu forte sotaque italiano, guardou-o no bolso e se retirou, visivelmente emocionado.
A cerimônia da Páscoa daquele ano restou sem missa na vila. Depois de orações comandadas por um prócer da Liga Católica, o povo, perplexo e aos poucos, abandonou o templo.
Aquele Domingo de Páscoa é sempre lembrado na Vila do Capivara, embora passados mais de 30 anos.

Soube-se, mais tarde, por parentes de Nelsa, que o casal estava na Bahia, em Salvador. João Antônio se tornara pai-de-santo de um Terreiro de Candomblé e ela médium-vidente de um Centro Espírita. Tiveram 3 filhos e, como num conto da Carochinha, viviam felizes...para sempre.

VHCarmo. (Dezembro de 2009).
Victor Hugo do Carmo

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