sexta-feira, 18 de março de 2011

Ligeirinha (nem tanto) é um conto.

                                 Quando a noite salva...
                                        ( conto)
Esses acasos acontecem. Estava eu a andar pelo calçadão de Copacabana, bairro que se tornou um cálido abrigo das pessoas da terceira idade no Rio de Janeiro. Ponto de encontro; ponto de conhecimento; lugar de conversa, de conversa, quase sempre, para passar o tempo. Os menos cuidadosos falam da velhice, coisa que os passantes repudiam. Quem caminha  ali se diz vivo e muito vivo; nada de velhice.
Esses acasos acontecem disse eu  acima e vou contar o mais recente: uma conversa e um passado comuns.
Quase não dava para conhecer o Jorge Guidon. A velhice, às vezes, torna as pessoas tão diferentes que só pequenos detalhes os identificam principalmente quando a distância no tempo é grande. Havia mais de 40 anos que não nos víamos. Nem eu, nem ele, desde logo, nos reconhecemos. Minha dúvida foi quebrada quando identifiquei uma mancha azulada que ele tinha no queixo. Estava lá; era ele, o dançarino. Seu nome de guerra  ‘‘Guidon, o Chê’.    Guidon pelo sobrenome e Chê porque ele era gaúcho de Dom Pedrito.
Rimos juntos de nossa logenvidade. Nos pusemos a lembrar da época em que freqüentávamos a noite dos cabarés da Lapa, dos “rende-vous” dos fins de noite; dos leitos macios das nossas amiguinhas livres nos casarões centenários, lá para os lados da Praça Cruz Vermelha e da Rua Henrique Valadares. Eu sem nenhum dom especial e ele um exímio bailarino e o predileto das “meninas”. Poupo-me agora de lembrar o que esse companheirismo de juventude e aquela boemia gostosa representaram para nós; todos que me lêem podem imaginar.
Reconhecidos: o abraço demorado, forte e terno, abriu caminho às confidências. Nos vimos pelas últimas vezes quando os nossos doces cabarés e  leitos noturnos da Lapa se tornaram pesados e a dança, a música e o canto, perderam a espontaneidade, por força da vigilância policial do regime ditatorial que então se instalara.
Descida a cortina escura da Ditadura Militar sobre o país, recolhi-me ao anonimato conveniente, carregando a minha angústia e perdi de vista o amigo Guidon, aquele que acabara de encontrar, ali, em frente o mar de Copacabana; no Posto 6.
A minha vida, um tanto sem graça, contei-lhe num só e rápido relato; me casara, vivera na Europa por alguns anos foragido, me separei daquela que me parecia eterna companheira e envelheci no Rio. Aposentado, como a maior parte daquela gente ali passante, me tornei um solitário caminhante do calçadão.

Assim, meio querendo dizer que nada acontecera de muito importante na vida dele, pareceu-me querer, no entanto,  que eu lhe indagasse sobre algo. Foi então que lhe falei do Chê das noites mundanas.
                             Foi o desate para a sua história.
                          Devo explicar: Guidon , além de bailarino e professor de dança, era capitão pára-quedista do Exército, instrutor de saltos e preparador físico, por isso era mesmo muito forte, dir-se-ia, lembrando Nelson Rodrigues, que ele tinha uma “saúde de vaca premiada”. Diga-se, no entanto, que, pelo menos para mim, ele era apenas “o bailarino” e companheiro de boemia.
                         - “Sabe o que me salvou companheiro? Foi a dança!. Eu conto pra você"; foi dizendo com aquele sotaque gaúcho que não o abandonara.
Jorge Guidon pôs-se a me contar:

                         Ainda morava no Bairro de Fátima naquele pequeno apartamento que você conheceu. Era numa noite de sábado, aí pelas nove. Fizera todo o preparativo para agüentar a divertida, mas cansativa, dança noturna que se aproximava. Tomei um banho, meti-me num terno claro, pois a noite estava calorenta. Me lembro, ainda, que andei tateando as minhas gravatas e escolhi uma bem colorida com motivos francesas, acho até que tinha a imagem da Torre Eiffel desenhada. Me perfumei discretamente e, como ainda tinha cabelos naquele tempo, presumo que os tenha penteado.
                         Quando afinal ia abrindo a porta para sair, alguém me obstou e com um tranco me empurrou de volta para dentro da sala. O inopinado da ação me impediu uma reação. Atrás daquele homem vinham dois outros.     Era um convite para eu ir com eles à Polícia do Exército (PE), na Rua Barão de Mesquita e, com um “chega-pra-lá” nada amistoso, me disse o primeiro homem: -"você está preso". Tentei dizer-lhes sobre o meu compromisso da noite. Os homens riram um riso debochado.     Explicações, nem ver. Foi-me apontado o jipe do exército que estava lá fora na rua. Com mais alguns pequenos e “delicados empurrões”, os três militares, cuja patente já nem me lembro mais, me atiraram ao veículo. Quis lembrar-lhes que eu também era oficial do Exército e eles fingiram não me ouvir, embora eu insistisse e aos berros.
                            Chegamos na Polícia do Exército. Fui então encaminhado a uma sala grande e mandado sentar frente a uma mesa enorme, ao canto, e esperar.  Depois de uns dez minutos entrou um Coronel – um tal de Comandante Fernandinho (posteriormente eu soube que era temido por suas tendências fascistas), envergava seu uniforme de serviço. Sentou-se à mesa à minha frente. Mostrou-se, inicialmente, cortês e passou a indagar-me sobre as coisas mais corriqueiras: sobre a minha patente – eu estava vestido para a noite - sobre a minha atividade militar e até, de modo sub-reptício, sobre a minha vida particular. Descartei de informar-lhe sobre minha vida familiar, embora insistisse. Ameaçou alterar-se mas, em seguida, conteve-se.
                   Comecei a perceber então  que, por trás daquela aparente gentileza, haviam outras intenções escondidas. Veio a pergunta reveladora:
                                    -"'Você conhece José Maria Gontijo?"
Eu me lembrei, então, que morei em Realengo com o Zé Maria, um bom amigo gaúcho de Porto Alegre, que tinha idéias de esquerda e que pertencera ao Partido Comunista Brasileiro. Isto tinha sido na época da minha chegada ao Rio; havia mais de 10 anos, por volta do ano de 1954, e já nem mais me lembrava dele. Fui direto na minha resposta:
                    - “Conheçi mas já não o vejo há mais de 10 anos”.
                            Naquele mesmo instante – como se fora coisa previamente combinada - penetrou na sala um jovem tenente e, contrariando a praxe militar de respeito ao superior, partiu agressivamente em minha direção, e tentou me intimidar.         Assim, meio sem quê nem porquê foi falando, sempre agitado e em voz alta:
                - "Pode contar tudo! a gente já vem te seguindo, não adianta esconder nada".
Num esforço para não estimular a violência do tenentinho arrogante , ali em frente ao Coronel, observei:
                                - “Se você já sabe tudo Tenente,  o que eu devo contar?”.
Usei um tom duro e o Coronel Fernandinho percebeu o entrevero que se armara entre nós e interviu, dirigindo:-se a mim:
                    -“Não, não.. vamos falar como gente: você pode até ser útil pra nós".
Esse “pra nós”, não me agradou e fui dizendo incontinenti:
                        - “Meu Coronel meu lugar é no treinamento de pára-quedistas, missão que desempenho há muito tempo no Exército e tenho o respeito do meu Comandante”.
                        O diálogo terminou ali. Fui conduzido ao xadrez, de terno, gravata colorida e perfumado.
                         Cerca de 10 dias depois, já uniformizado – trouxeram-me um uniforme e as patentes – me conduziram ao mesmo Coronel. O militar já não se mostrava educado como antes e foi perguntando raivosamente:
                   - "Quais as testemunhas que você tem para provar que não está metido na subversão? ".
                        - “A minha atividade que tenho fora do âmbito militar é na noite, Coronel, sou professo de dança!. As moças que dançam comigo me conhecem bem”.
 Em seguida nomeei três delas, evitando, dar nomes de colegas militares para não os constranger e expô-los àquela violência.
                           Fui conduzido de novo à prisão, ali fiquei mais uns dez dias, fui, então,  advertido a não me comunicar com ninguém, mas me deixaram – na verdade – no Corredor frente às celas todas ocupadas. Por ironia naquelas celas estavam presos alguns chineses de uma missão comercial vinda ao Brasil que tentavam se comunicar, entre eles, aos gritos na sua língua que soava – aos os meus ouvidos -, como um barulho desconexo. A advertência fora perfeitamente inútil.
                   Pela manhã de uma segunda-feira – alguns dias depois – , acordado do colchão em que dormia no corredor, fui conduzido à sala grande, onde estava o impertinente e subserviente jovem tenente. Ele foi logo dizendo:
                  - “Elas estão aí; vão lhe ver e reconhecer, senão você vai ver o que vai lhe acontecer; disse ameaçadoramente.
                       Vieram as três amiguinhas, as minhas  melífluas dançarinas com as quais eu convivia nas noites, mas cujos nomes somente conhecia pelos chamados “nomes de guerra”. A vida que elas levavam não lhes permitia usar o nome civil e eu não os sabia.  Bateu-me, naturalmente, o medo: será que elas confirmariam a nossa intimidade, frente àquele aparato investigativo?. Eu não poderia exigir delas a coragem para reconhecer um preso, principalmente naquela época em que reinava a violência e logo numa repartição da famigerada Polícia do Exército.
                   Entrei na anti-sala trêmulo.   As três juntas – ao me ver - correram em minha direção, exclamando:
                         “Oh, este é o Chê, nosso gaúcho dançarino querido...”
Depois de tentar arrancar das minhas meninas qualquer informação contra mim, e não conseguindo, o tenentinho se desconcertou e, em seguida foi chamar o Coronel.
                               - “Este é o nosso pé-de-valsa, Comandante, é o Che”, disseram as três a uma só voz indagando; “o que há com ele?”
                                    Elas, simplesmente, não sabiam o meu nome verdadeiro e acabavam de me salvar daquela situação aflitiva e ameaçadora, chamando-me, carinhosamente,pelo meu apelido de boêmio: "o Chê".                      Voltamos ao salão e o Oficial maior me disse:
                              - “Você está solto; pode ir!. Mas vai ficar sob nossa vigilância e não diga a ninguém do que se passou aqui; para  ninguém, absolutamente!”.
                               - “Coronel, já que estou solto, vocês têm o dever de me levar ao meu quartel”.
O oficial encarou-me com certa surpresa e disse:
                           - “Você tem razão!'   E, virando para o tenentinho – que a esta altura estava  ainda desconcertado pelo ocorrido – lhe disse:
                                  "Tome uma viatura e leve o Capitão ao quartel”.

                               Fui bem recebido no meu quartel e inventei desculpas pelas minhas ausências – hoje já nem me lembro quais foram aquelas desculpas e  sua utilidade  – e retomei minha atividade.
                               Por algum tempo, o Cooronel, meu Comandante, insistia em ter uma conversa particular comigo. Eu fui me descartando dele, evitando o contato. Somente quando lhe indaguei se aquela impertinência era uma ordem; ele me disse que era: aí fui até ele, na sala do Comando. Queria saber detalhes do acontecido comigo; já soubera da minha prisão.         Fui direto, mais uma vez::
                                        -“Comandante, estou proibido de falar nesse assunto”.
O homem ficou possesso.
                                    Daí em diante, nunca mais treinei oficiais de qualquer patente nos saltos de pára-quedas, só me direcionavam recrutas e os aviões mais velhos em serviço. Me sentia marginalizado.
                                  Ainda depois de reformado, até 1985, fiquei impedido de viver livremente, sem as suspeitas de estar sendo vigiado.

                                  Ah, companheiro, nunca me esqueci das minhas “dançarinas” cujos nomes verdadeiros eu também nunca soube. Nas noites que se seguiram à minha libertação, os leitos das madrugadas das minhas amiguinhas me pareciam mais macios e aconchegantes.

                         O  Jorge Chê Guidon se despediu emocionado. Apertamo-nos com outro abraço forte e juramos que, daquele dia em diante, iríamos nos encontrar mais vezes no cálido calçadão de Copacabana.
 VHCarmo.  - Fev.2011.

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