segunda-feira, 14 de março de 2011

Ligeirinha de hoje (14.03.2011) é um conto ....

                                                        A Magistratura.


                                                         ( conto)

                      “ Texto de ficção. Alguma analogia com fato real será mera coincidência?”.

                         O rapaz era mesmo dotado de uma inteligência privilegiada. Era daqueles a quem se costuma atribuir um alto QI. Nicolas vivia no seio harmonioso de uma família de classe média de Cascadura; mulato, filho de uma mãe branca e de um pai negro. Estudioso, além de inteligente. Os cursos fundamental e médio fizera com distinção no Colégio Artes e Instrução, antiga escola suburbana por onde passaram ilustres personagens da cidade do Rio de Janeiro. Na Universidade, na Faculdade Nacional de Direito, sobressaiu-se no estudo das letras jurídicas, francamente elogiado pelos mestres.
                         Desde menino o Nicolas tinha uma verdadeira obsessão: haveria de ser juiz; dizia para quem quisesse ouvir – “eu vou ser Juiz”. O pai, Camilo, advertia o filho das dificuldades de ingresso na magistratura. Além da natural complexidade do concurso, pesava contra ele a cor, dizia o pai. Era mulato escuro com muita honra, mas, teria que enfrentar o preconceito contra os negros no concurso, ainda que disfarçado.
                           No Tribunal do Estado do Rio, como de resto nos demais tribunais, juizes negros são raros e, normalmente, os poucos e raros não ascendem à segunda instância, não se tornam nem desembargadores, nem ministros nas instâncias superiores. Ao alerta do pai ele, enfaticamente, respondia

- “pai, eu vou enfrentar todas as dificuldades; eu quero ser juiz e vou ser, já me imagino vestindo a toga”.

                                No primeiro concurso programado pelo Tribunal, após a sua formatura no qual tinha  précondições concorrer, o Nicolas se inscreveu. Estudou com afinco e, para assegurar-se contra algum risco, freqüentou um curso de atualização em matérias nas quais se julgava menos preparado
                               A prova escrita lhe pareceu fácil, tal o preparo que tinha. Conferido o gabarito, errara apenas uma questão cujo valor era meio ponto. A nota máxima era 10 e o Nicolas ficou com 9,5. Era esperar, então, a prova oral e o chamado teste de impressão pessoal. Eufórico Nicolas já se antevia presidindo uma audiência, prolatando uma sentença.
                          O dia da prova oral, como soe ser sempre, enche-se o salão nobre do Tribunal de interessados e parentes para assistir as provas. A banca de desembargadores e procuradores estava, naquele dia, composta da mais fina flor dos operadores do direito.
                          É bom que se diga que a prova oral tem sido a oportunidade em que se exerce o preconceito, não só o da cor, mas também da origem do candidato. Diz-se, maldosamente nos corredores do foro que esses concursos são seletivos, ou seja, neles se selecionam os candidatos que vão perpetuar as castas que compõem os quadros da Magistratura. . Ao exame das listas dos magistrados que aparecem nas revistas dos Tribunais se podem verificar nomes familiares em profusão. Avô Ministro, filho Desembargador, neto juiz, por ai afora.
                         O Nicolas era tão brilhante que superou tudo isto; não foi possível embaraçá-lo, por mais difíceis que fossem as questões que lhe foram propostas pela banca. Diga-se de passagem: houve entre os assistentes uma certa estupefação. “O negro é bom, mesmo”, comentava-se em voz baixa, com admiração.     
                      Para a aprovação faltavam, apenas, os testes de impressão pessoal, sempre feitos numa espécie de clausura pelos magistrados examinadores e, sem platéia. Seria a última barreira a ultrapassar pelo rapaz.
                     O Nicolas não passou pelo teste; foi reprovado e, como sempre nesses casos, as razões não foram comunicadas ao examinado. Apenas um dos examinadores aproximou-se dos pais do Nicolas – que o esperavam lá fora da sala - e se disse constrangido pelo resultado; quase como que pedindo desculpas; foi só.
                    Aquele foi um dia de consternação para a família do rapaz; o pai e a mãe, que tanto temiam por aquele momento, de tudo fizeram para amenizar a profunda decepção que lhes invadiu. Durante dias inteiros Nicolas se manteve calado, num canto de seu quarto, com o olhar fixo em um ponto indefinível; algumas lágrimas, às vezes, rolavam de seus olhos.
                        O mulato escuro  se sentiu mais negro do que nunca e nunca mais abriu um livro. Depois de algum tempo sumiu da casa dos pais. Camilo o procurou por todos os locais previsíveis em que pudesse estar; não o encontrou. Além da decepção os pais passaram a sofrer a ausência do filho querido. Como ele,  num determinado momento, haviam achado possível o sonho de vê-lo de toga.

                         Alguns anos se passaram. Depois de uma batida policial na Favela de Manguinhos, os jornais anunciaram em manchete: – “Preso o traficante Nick”, e com o subtítulo: “o bandido mais perigoso e mais procurado das favelas do Rio de Janeiro”.
                       Camilo ao ver na televisão aquele homem não conteve o choro, abraçado à mãe, viram o filho negro algemado, ele que sonhara um sonho impossível: o de ser juiz.

VHCarmo. ( Março de 2008).

Nenhum comentário:

Postar um comentário