terça-feira, 2 de março de 2010

Magistratura (conto)

A Magistratura.

( conto)

“Texto de ficção; alguma analogia com fato real será mera coincidência”.

O rapaz era mesmo dotado de uma inteligência privilegiada. Era daqueles a quem se costuma atribuir um alto QI. Nicolas vivia no seio harmonioso de uma família de classe média de Cascadura; mulato, filho de uma mãe branca e de um pai negro. Estudioso além de inteligente. Os cursos fundamental e médio fizera com distinção no Colégio Artes e Instrução, antiga escola suburbana por onde passaram ilustres personagens da cidade do Rio de Janeiro. Na Universidade, na Faculdade Nacional de Direito, sobressaiu-se no estudo das letras jurídicas, francamente elogiado pelos mestres.

Desde menino o Nicolas tinha uma verdadeira obsessão: haveria de ser juiz; dizia para quem quisesse ouvir – “eu vou ser Juiz”. O pai, Camilo, advertia ao filho das dificuldades de ingresso na magistratura. Além da natural dificuldade do concurso, pesava contra ele a cor, dizia o pai. Era mulato escuro com muita honra, mas, teria que enfrentar o preconceito contra os negros no concurso, ainda que disfarçado. No Tribunal do Estado do Rio, como de resto nos demais tribunais, juizes negros são raros e, normalmente, não ascendem à segunda instância, não se tornam nem desembargadores, nem ministros das instâncias superiores. Ao alerta do pai ele, enfaticamente, respondia

- “pai, eu vou enfrentar todas as dificuldades; eu quero ser juiz e vou ser, já me imagino vestindo a toga”.

No primeiro concurso programado pelo Tribunal, após a sua formatura, o Nicolas se inscreveu. Estudou com afinco e, para assegurar-se de algum risco, freqüentou um curso de atualização em matérias nas quais se julga menos preparado. A prova escrita lhe pareceu fácil, tal o preparo que tinha. Conferido o gabarito, errara apenas uma questão cujo valor era meio ponto. A nota máxima era 10 e o Nicolas ficou com 9,5. Era esperar, então, para a prova oral e o chamado teste de impressão pessoal. Eufórico, Nicolas já se antevia presidindo uma audiência, prolatando uma sentença.

O dia da prova oral, como soe ser sempre, enche-se o salão nobre do Tribunal de interessados e parentes para assistir as provas. A banca de desembargadores e procuradores estava, naquele dia, composta da mais fina flor dos operadores do direito.

É bom que se diga que a prova oral tem sido a oportunidade em que se exerce o preconceito, não só o da cor, mas também da origem do candidato. Diz-se, à boca pequena, que esses concursos são seletivos, ou seja, neles se selecionam os candidatos que vão perpetuar as castas que compõem os tribunais. Ao exame das listas dos magistrados que aparecem nas revistas dos Tribunais se podem verificar nomes familiares em profusão: avô Ministro, filho Desembargador, neto juiz, por ai afora.

O Nicolas era tão brilhante que superou tudo isto; não foi possível embaraçá-lo, por mais difíceis que fossem as questões que lhe foram propostas pela banca. Diga-se de passagem: houve entre os assistentes uma certa estupefação. “O negro é bom, mesmo”, comentava-se em voz baixa, com admiração. Faltavam, para a aprovação final, os testes de impressão pessoal. Seria a última barreira a ultrapassar pelo mulato escuro.

O Nicolas não passou pelo teste e, como sempre nesses casos, as razões não foram comunicadas ao examinado, embora todos as adivinhassem. Apenas um examinador, aproximou-se dos pais do Nicolas e se disse constrangido pelo resultado; foi só.

Aquele foi um dia de consternação para a família do rapaz; o pai e a mãe, que tanto temiam por aquele momento, de tudo fizeram para amenizar a profunda decepção do rapaz. Durante dias inteiros Nicolas se manteve calado, num canto de seu quarto, com o olhar fixo em um ponto indefinível; algumas lágrimas, às vezes, rolavam de seus olhos.

O mulato escuro nunca mais abriu um livro. Depois de algum tempo sumiu da casa dos pais. Camilo o procurou por todos os locais previsíveis em que poderia estar; não o encontrou. Além da decepção os pais passaram a sofrer a ausência do filho querido. Como ele chegaram também a sonhar vê-lo de toga um dia.

Alguns anos se passaram. Depois de uma batida policial na favela de Manguinhos, os jornais anunciaram em manchetes: – “Preso o traficante Nick”, e com o subtítulo: “o bandido mais perigoso e mais procurado das favelas do Rio de Janeiro”. Seu Camilo ao ver na televisão aquele homem algemado, não conteve o choro, abraçado à mãe, viu seu filho negro que sonhara um dia um sonho impossível: o de ser juiz.
                                  VHC.

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