É oportuno inserir aqui neste humilde bloguinho uma ficção que tem a ver com a VERDADE que ora se persegue em relação ao que ocorreu, de fato, no país durante a Ditadura Militar de tão triste memória. O texto é de ficção mas a realidade da narração lhe confere autêntica e dolorosa lembrança.
Olhem só:
MINHA AMIGA EMA MARIA
(conto)
Nos conhecemos nos idos de
1962. Fervilhavam, então, nas mentes jovens, as questões políticas ligadas às
reformas de base, reivindicadas pelas classes populares, arrimadas na presença
de um governo de cunho popular que garantia a plena vigência da Constituição de
1946. Ema Maria estava, então, aí pelos
23 anos de idade; era bela, mas não importa falar, pelo menos por agora, sobre
sua beleza. Egressa do movimento
estudantil filiara-se ao Partido Comunista (PCB) e logo se revelou
uma liderança. De inteligência
viva e boa cultura, foi fácil assim se impor.
Sobrevindo a ditadura militar em 1964, Ema passou à clandestinidade. Com AI 5, optou pela luta armada. De Ema passou à Sílvia Conde, seu codinome.
Com o recrudescimento
da repressão, a guerrilheira esteve foragida em Cuba, onde se nutriu da
doutrina do “foquismo”. Voltando ao
Brasil, meteu-se na Guerrilha do Araguaia que acreditava ser o núcleo, o
foco, para expandir a revolução e a
restauração democrática. Foi presa e
torturada, no DOI-CODI de São Paulo,
para onde foi transferida, mas sobreviveu.
Encontrei-a, faz alguns meses, caminhando pelo calçadão da Praia de
Copacabana. Notei que ainda
conserva traços de formosura que as rugas tentavam encobrir. Das torturas que lhe infligiram restou a
claudicação no seu caminhar; coisa leve quase imperceptível.
Num desses encontros
sentamo-nos num banco em frente ao mar.
Naquela manhã o mar
estava manso e encarneirado; soprava uma doce brisa em direção ao Arpoador,
agitando os leques verdes das folhas dos coqueiros. O tempo e a luz azulada da manhã que se
refletiam na água, parece que excitaram a imaginação da minha amiga, ali
sentada ao meu lado.
Ela passou a me
contar que, libertada, em virtude da lei de anistia, voltou a dar aulas de
história nos cursos médios, na zona sul da cidade, o que lhe rendeu a
aposentadoria e agora vive a esperar uma indenização, pleiteada numa ação que
se prolonga nas morosas vias judiciais. Discorreu sobre seu passado e eu a
ouvia, interessado.
Jamais tive coragem de
entrar em questões pessoais mais íntimas da ex-guerrilheira, nem, mesmo, sobre
sua prisão e torturas. Ema foi quem
puxou pelo fio da memória e passou a relembrar.
Às vésperas do golpe que derrubou o governo democraticamente eleito de
João Goulart – o Jango – vivia-se uma situação contraditória. De um lado as reivindicações, apoiadas pelas
forças populares, intelectuais e boa parte da pequena burguesia, tentavam
viabilizar as chamadas reformas de
base. Eram reformas - lembrou Ema - que
visavam a desobstruir o caminho do desenvolvimento do país que, então se
extinguia, ao se completar o ciclo econômico
da substituição de importações. As reformas principais pelas quais se lutava
então, eram: a reforma agrária, a
urbana; a reforma educacional; a
tributária, a universitária.
Ema Maria,
então, se revelava emocionada e prosseguia no seu discurso. Do outro lado, me dizia ela, tramava-se o
golpe militar com a intromissão do governo americano e de seu embaixador no Brasil que
fez ingressar no país centenas de agentes da CIA e até um padre, de nome
Payton, que, depois, se soube,
nem padre era.
Os yanques no auge
da crise, desencadeada artificialmente, trouxeram sua esquadra para as costas do
mar do Rio de Janeiro, inclusive o porta-aviões Florrestal, na operação Brodher
Sam, para assegurar o êxito do golpe que se tramava, operação solicitada, à socapa, pelo próprio Ministro das Relações Exteriores Afonso Arinos.
Apesar de ter conhecimento daquilo que Ema falava, comprazia-me ouvi-la.
A ex-guerrilheira
Sílvia Conde, neste ponto da narrativa, desviou o olhar de mim, lançando-o para
um ponto indefinível lá dentro do mar. Com a voz embargada passou
a revelar um drama íntimo, vivido nos dias de prisão no Exército, onde esteve por
mais de dois anos. Era tratada sempre
com grosseria e estupidez e, como as outras presas, era visitada, diariamente,
por um truculento oficial do exército, chefe daquela prisão feminina. O ódio que ele despertava entre as mulheres
era a imenso, me contou Ema. Ela
jamais se esqueceu do nome que ele
usava, era o Capitão Ribeiro.
Ema Maria
percebeu, no entanto, que Ribeiro, moreno de porte atlético, feições corretas,
tinha, para com ela, um certo olhar de
estranha cupidez. Procurava
desviar-se dele e com isso provocava sua ira.
Ameaças e castigo se seguiam.
Remetia-a, então, à sala de torturas, mandava despi-la e se punha a olhar o seu corpo
nu. O ódio crescia nela e tomava conta
de todo o seu corpo.
Ema continuou a
narrar seu drama e me foi dizendo pausadamente:
-- “Num daqueles
dias em que me pôs nua, o Capitão
Ribeiro caminhou em minha direção e, ao mesmo tempo, em que se despia, ia
jogando as peças do uniforme ao chão.
Nu, em passos lentos; olhar lascivo, chegou junto e atirou-se sobre
mim. Fomos ao chão de pedra úmido e,
embora eu resistisse com todas minhas forças, ele me penetrou”.
“Ah amigo, nunca revelei isto a
ninguém: a fêmea que ainda vivia dentro de mim não resistiu. Ali, gozei e foi um orgasmo longo e quase doloroso. Até hoje não sei se a lembrança das
torturas que sofri me causam uma
amargura maior do que a da
fraqueza feminina que se impôs”.
Senti que Ema
estava, naquele momento, muito emocionada.
Deitou sua cabeça sobre o meu ombro e soluçou baixinho.
O mar, em frente,
continuava espalhando a espuma branca sobre a areia e a doce brisa continuava a
balançar o leque das folhas dos coqueiros. Nunca mais
tocamos no assunto.
Maio-2006. VHCarmo..
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