Há um momento na poesia
em que seu enquadramento crítico sucumbe a uma definição. A análise hermética que busca limitar o discurso poético a um determinado contexto
artístico e temporal não expressa a forma especial que reveste o verso. Nos versos do poeta Ricardo do Carmo há o que este escriba
costuma rotular como uma "poesia urbana".
Não que seus versos se prendam a uma temática material na construção da
urbes; não é bem assim. A sua poética
fincada no real se lança ao universalismo do sentimento e da emoção, abraçando
a reflexão do discurso.
Reproduzo palavras de
um seu crítico arguto:
"Com
uma linguagem contemporânea que incorpora os elementos do cotidiano na
metaforização da vida, utiliza-se de inúmeros recursos poéticos como a livre
associação de palavras, a enumeração, a interpenetração de imagens e o jogo de
abstrato e concreto. (Marcus
Vinicius Quiroga - crítico literário).
O poema que aí vai
retrata bem o manejo emotivo e elegante e, às vezes, contundente, dos versos do poeta.
Olhem só:
A
BAILARINA.
Sonâmbulos
os dedos procuram no
escuro
o corpo alquebrado da
bailarina
e qual tocassem lira
dedilham desejos na
carne fina, sempre
disposta , sempre
disponível.
Assim
animando o inanimado do
quarto
em ondas de cachemire e topaze,
erguida em salto alto a
bailarina
inicia o seu giro de
amor: gravitando
no vestido branco
herdado,
aprumando o ninho de
prazeres
cedido em contrato para
a fera faminta,
recém-chegada da caçada
competitiva da vida.
Sob os auspícios
de duas luas depiladas,
a lua-de-mel
e a lua das unhas
esmaltadas, giram em taco encerado,
em chão vitrificado, em
quintal desfolhado.
Se viram refletidos em
fundo de panela areada.
Tingiram seus corpos na
tinta da roupa enxaguada.
Flutuaram em bolha de
sabão em pó,
dentro da caixinha de
música (o lar da bailarina!).
Ela,
a escrava da Senzala à
Casa Grande,
foi a profissional
francesa,
foi a louca espanhola
de cravo na orelha,
a primeira professora,
a namorada inesquecível,
satisfazendo todos os
caprichos masculinos.
E serenado
o último suspiro do
macho,
no rosto de tantas
faces
forjadas pela
maquiagem,
rola uma lágrima
furta-cor
feita de rímel, ruge,
batom.
Frigidamente amanhece:
ele tranca a caixa
ele tranca a casa
levando no chaveiro
as chaves da música
e do corpo da
bailarina.
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Ricardo do Carmo nasceu
no Rio de Janeiro, onde vive. É professor de Educação Artística; ostenta vários
títulos literários, principalmente na poesia com a publicação de dois livros. O
poema acima foi extraído de seu recente livro "Amor de Consumo".(Editora
RTC).
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VHCarmo.
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