domingo, 19 de agosto de 2012

UM MOMENTO DE POESIA (é algo mais).


Há um momento na poesia em que seu enquadramento crítico sucumbe a uma definição.  A análise hermética que busca limitar o  discurso poético a um determinado contexto artístico e temporal não expressa a forma especial que reveste o verso.  Nos versos do poeta Ricardo do Carmo há o que este escriba costuma rotular como uma "poesia urbana".  Não que seus versos se prendam a uma temática material na construção da urbes; não é bem assim.  A sua poética fincada no real se lança ao universalismo do sentimento e da emoção, abraçando a reflexão do discurso.
Reproduzo palavras de um seu crítico arguto:
 "Com uma linguagem contemporânea que incorpora os elementos do cotidiano na metaforização da vida, utiliza-se de inúmeros recursos poéticos como a livre associação de palavras, a enumeração, a interpenetração de imagens e o jogo de abstrato e concreto. (Marcus Vinicius Quiroga - crítico literário).
O poema que aí vai retrata bem o manejo emotivo e elegante e, às vezes,  contundente, dos versos do poeta.

Olhem só:
    A BAILARINA.

Sonâmbulos
os dedos procuram no escuro
o corpo alquebrado da bailarina
e qual tocassem lira
dedilham desejos na carne fina, sempre
disposta , sempre disponível.

Assim
animando o inanimado do quarto
em ondas de cachemire e topaze,
erguida em salto alto a bailarina
inicia o seu giro de amor: gravitando
no vestido branco herdado,
aprumando o ninho de prazeres
cedido em contrato para a fera faminta,
recém-chegada da caçada competitiva da vida.

Sob os auspícios
de duas luas depiladas, a lua-de-mel
e a lua das unhas esmaltadas, giram em taco encerado,
em chão vitrificado, em quintal desfolhado.
Se viram refletidos em fundo de panela areada.
Tingiram seus corpos na tinta da roupa enxaguada.

Flutuaram em bolha de sabão em pó,
dentro da caixinha de música (o lar da bailarina!).

Ela,
a escrava da Senzala à Casa Grande,
foi a profissional francesa,
foi a louca espanhola de cravo na orelha,
a primeira professora, a namorada inesquecível,
satisfazendo todos os caprichos masculinos.

E serenado
o último suspiro do macho,
no rosto de tantas faces
forjadas pela maquiagem,
rola uma lágrima furta-cor
feita de rímel, ruge, batom.

Frigidamente amanhece:
ele tranca a caixa
ele tranca a casa
levando no chaveiro
as chaves da música
e do corpo da bailarina.
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Ricardo do Carmo nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. É professor de Educação Artística; ostenta vários títulos literários, principalmente na poesia com a publicação de dois livros. O poema acima foi extraído de seu recente livro "Amor de Consumo".(Editora RTC).
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VHCarmo.




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