terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Minha amiga Ema (conto).

                                                           Minha amiga Ema Maria

                                                                Lembranças fugidias...

                                                                         ( conto)

                                         Nos conhecemos nos idos de 1962. Fervilhavam, então, nas mentes jovens, as questões políticas ligadas às reformas de base, reivindicadas pelas classes populares, arrimadas na presença de um governo de cunho popular que garantia a plena vigência da Constituição de 1946. Ema Maria estava, então, aí pelos 23 anos de idade; era bela, mas não importa falar, pelo menos por agora, sobre sua beleza. Egressa do movimento estudantil filiara-se ao Partido Comunista (PCB) e logo se revelou uma liderança. De inteligência viva e boa cultura, foi fácil assim se impor. Sobrevindo a ditadura militar em 1964, Ema passou à clandestinidade. Com AI 5, optou pela luta armada. De Ema passou à Sílvia Conde, seu codinome.
                                       Com o recrudescimento da repressão, a guerrilheira esteve foragida em Cuba, onde se nutriu da doutrina do “foquismo”. Voltando ao Brasil, meteu-se na Guerrilha do Araguaia que acreditava ser o núcleo, o foco, para expandir a revolução e a restauração democrática. Foi presa e torturada, no DOI-CODI de São Paulo, para onde foi transferida, mas sobreviveu. Encontrei-a, faz alguns meses, caminhando pelo calçadão da Praia de Copacabana. Notei que ainda conserva alguns daqueles traços de formosura que as rugas tentam encobrir. Das torturas que lhe infligiram restou a claudicação no seu caminhar; coisa leve quase imperceptível.
                                          Num desses encontros sentamo-nos num banco em frente ao mar.

                                       Naquela manhã o mar estava manso e encarneirado; soprava uma doce brisa em direção ao Arpoador, agitando os leques verdes das folhas dos coqueiros. O tempo e a luz azulada da manhã que se refletiam na água, parece que excitaram a imaginação da minha amiga, ali sentada ao meu lado.
                                        Ela passou a me contar que, libertada, em virtude da lei de anistia, voltou a dar aulas de história nos cursos médios, na zona sul da cidade, o que lhe rendeu a aposentadoria e agora vive a esperar uma indenização, pleiteada numa ação que se prolonga nas morosas vias judiciais. Discorreu sobre seu passado e eu a ouvia, interessado.
                                        Jamais tive coragem de entrar em questões pessoais mais íntimas da ex-guerrilheira, nem, mesmo, sobre sua prisão e torturas. Ema foi quem puxou pelo fio da memória e passou a relembrar. Às vésperas do golpe que derrubou o governo democraticamente eleito de João Goulart – o Jango – vivia-se uma situação contraditória. De um lado as reivindicações, apoiadas pelas forças populares, intelectuais e boa parte da pequena burguesia, tentavam viabilizar as chamadas reformas de base. Eram reformas - lembrou Ema - que visavam a desobstruir o caminho do desenvolvimento do país que, então se extinguia, ao se completar o ciclo econômico da substituição de importações. As reformas principais pelas quais se lutava então, eram: a reforma agrária, a urbana; a reforma educacional; a tributária, a universitária.
                                     Ema Maria, então, se revelava emocionada e prosseguia no seu discurso. Do outro lado, me dizia ela, tramava-se o golpe militar com a intromissão do governo americano e de seu embaixador que fez ingressar no país centenas de agentes da CIA e até um padre, de nome Payton, que, depois, se soube, nem padre era. Os yanques no auge da crise, desencadeada artificialmente, trouxeram sua esquadra para as costas do mar do Rio de Janeiro, inclusive o porta-aviões Florrestal, na operação Brodher Sam, para assegurar o êxito do golpe que se tramava, operação solicitada pelo próprio Ministro das Relações Exteriores Afonso Arinos. Apesar de ter conhecimento daquilo que ela falava, comprazia-me ouvi-la.
                                  A ex-guerrilheira Sílvia Conde, neste ponto da narrativa, desviou o olhar de mim, lançando-o para um ponto indefinível lá dentro do mar. Com a voz embargada passou a revelar um drama íntimo, vivido nos dias de prisão, onde esteve por mais de dois anos. Era tratada sempre com grosseria e estupidez e, como as outras presas, era visitada, diariamente, por um truculento oficial do exército, chefe daquela prisão feminina. O ódio que ele despertava entre as mulheres era a imenso, me contou Ema. Ela jamais se esqueceu do nome que ele usava, era o Capitão Ribeiro.
                                Ema Maria percebeu, no entanto, que Ribeiro, moreno de porte atlético, feições corretas, tinha, para com ela, um certo olhar de estranha cupidez. Procurava desviar-se dele e com isso provocava sua ira. Ameaças e castigo se seguiam. Remetia-a, então, à sala de torturas, mandava despi-la e se punha a olhar o seu corpo nu. O ódio crescia nela e tomava conta de todo o seu corpo.

Ema continuou a narrar seu drama e me foi dizendo pausadamente:

                                 -- “Num daqueles dias em que me pôs nua, o Capitão Ribeiro caminhou em minha direção e, ao mesmo tempo, em que se despia, ia jogando as peças do uniforme ao chão. Nu, em passos lentos; olhar lascivo, chegou junto e atirou-se sobre mim. Fomos ao chão de pedra úmido e, embora eu resistisse com todas minhas forças, ele me penetrou”.
                “Ah amigo, nunca revelei isto a ninguém: a fêmea que ainda vivia dentro de mim não resistiu. Ali, gozei e foi um orgasmo longo e quase doloroso. Até hoje não sei se a lembrança das torturas que sofri me causam uma amargura maior do que a da fraqueza feminina que se impôs”.
                                    Senti que Ema estava, naquele momento, muito emocionada. Deitou sua cabeça sobre o meu ombro e soluçou baixinho.
                                     O mar, em frente, continuava espalhando a espuma branca sobre a areia e a doce brisa continuava a balançar o leque das folhas dos coqueiros. Nunca mais tocamos no assunto.

Maio-2006.
VHCarmo.



           

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