quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

DE BUENOS AIRES ATÉ URUGUAIANA...

                  O conto que aí vai surgiu na mente deste escriba por ocasião de uma viagem que, com minha mulher, fizemos de Buenos Aires à Uruguaina - Rio Grande do Sul que, dada a precariedade do ônibus e as dificuldades do percurso, jamais foi esquecida.  A figura do velho soldado escapa, a rigor, da ficção mas foi deslocada para aquela viagem. São coisas da ficção...
      Olhem só:                         

                       CONFIDÊNCIAS DE UM VELHO SOLDADO.


                                                             ( conto)

O velho ônibus no qual vínhamos de Buenos Aires, cor de aço polido, ia para Uruguaiana na fronteira brasileira. Era um veículo muito rodado, embora bem conservado. Não tinha banheiro e a cada 50 quilômetros, quando era possível, parava numa estância onde se encontrava algo para os passageiros comer e banheiros. Quando o ônibus penetrou na região semiárida do norte da Argentina em cujos campos secos, entremeados de manchas verdes rasteiras, sob um céu de chumbo, ainda se viam alguns rebanhos de gado vacum e ovelhas, as estâncias escasseavam e quando os passageiros se apertavam em suas “necessidades”, as paradas se davam a céu aberto. Primeiro as mulheres por trás do ônibus se agachavam; depois iam os homens que eram em maioria. E a viagem prosseguia por aqueles ermos. Vinda a noite, as paradas na estrada eram mais tranqüilas, protegidas pelo negrume com as luzes do veículo apagadas e, aí, as “necessidades” eram satisfeitas com mais tranqüilidade; ouviam-se, apenas, os pios das corujas e o esvoaçar dos pássaros noturnos.

No assento ao meu lado, desde a cidade de Rosário, sentou-se um homem que aparentava, então, aí por uns 60 anos; forte, branco e avermelhado, de olhos muito azuis, com um jeitão simpático. Nem mais percorridos 2 quilômetros, ali ao meu lado, ele puxou conversa. Era estrangeiro, falava com forte sotaque que não pude logo definir. Falou do tempo, da natureza inóspita daquela região em que estivera por alguns anos, cuidando do gado, quando veio da Rússia, após a segunda guerra. Fora, então, visitar na Argentina velhos camaradas.

A Segunda Guerra Mundial foi o gancho para prolongar a conversa e espancar a monotonia do rodar vagaroso do velho veículo por aquelas estradas precárias. Estranhamente, o assunto, pelo qual ele mesmo enveredou, pareceu transformar o seu semblante calmo, imprimindo-lhe uma nuvem de tristeza e contração. No entanto, parecia-me, por outro lado, que lhe comprazia contar sobre a guerra que, desde logo me disse que participara como soldado.

Ele, embora russo, nascera em Sinferopol na Península da Criméia onde passou a sua infância e a juventude. Foi um adepto dos exercícios de tiro ao alvo, costume muito em voga naquela região. Sem qualquer traço de convencimento, sem constrangimento mesmo, confessou que se tornou, ainda bem moço, um exímio atirador, usando diversos tipos de armas inclusive algumas de longo alcance.

Vinda a invasão alemã da União Soviética pelos exércitos nazistas, em junho de 1941, Miguel teve que abandonar a escola profissional que freqüentava – ele sonhara ser piloto de avião - e, convocado, foi para o front. O Exército Vermelho recrutava atiradores de elite para atuar na retaguarda dos exércitos alemães invasores que, àquela altura, já penetravam por mais de 600 quilômetros no interior da Bielo Rússia.

Ele continuava a sua narrativa. Atirados às margens do Pântano de Tripet, onde os veículos pesados alemães e a tropa não tinham como avançar, contornando-o, deixavam algumas brechas no front. Miguel e mais quatro atiradores foram introduzidos naqueles espaços, em trajes civis chegando àquela região, em pontos estratégicos, junto às estradas de ferro e no flanco da retaguarda das forças invasoras.

Munido de armas de alta precisão, munição e algo para a subsistência, atirados por planadores russos, eles se separaram e se embrenharam pelo terreno úmido do pântano, protegidos pelos turfos da vegetação esparsa. Dali, protegido e com o auxílio da luneta de precisão da sua arma, Miguel atirava, à distância, alvejando, até com certa facilidade, os vagões de combustíveis dos trens que vindos do Oeste iam em busca do front. A explosão destruía parte do trens e fazia voar os trilhos. A cada ação, o Miguel Vichinskis – ele fez questão de me dizer o seu nome por inteiro – fugia, às pressas do local que, em seguida, era bombardeado pela artilharia inimiga.

Os alemães, mais tarde, na tentativa de impedir os atiradores de elite no seu flanco e na retaguarda, começaram a lançar pára-quedistas para dentro do pântano a fim de impedir aquela ação que lhes causava problemas sérios de abastecimento, tanto de combustíveis como de alimentos das tropas que iam na frente de batalha. Os blindados e tanques não penetravam o pântano onde se arriscariam ficar atolados no terreno encharcado e movediço.

Àquela altura o velho ônibus deu uma parada numa região de matas, em uma estância mais próxima da fronteira do Brasil. Descemos todos passageiros e, depois de muitas horas sem comer, encontramos ali um farto café-da-manhã. Deu tempo até para os passageiros lavarem-se ainda que ligeiramente.

A viagem prosseguiu após, cerca de uma hora. Miguel, continuou a narrar, e aí, já entrávamos no terço final da viagem, o velho ônibus ia penetrando o território brasileiro.

Quando cessava a artilharia, Miguel procurava outra posição, já agora vigiando a presença de soldados alemães atirados de pára-quedas dentro dos alagadiços. Dormia abraçado às suas armas, procurando sempre se acercar das casas de algum dos poucos habitantes daquela terra úmida. Voltava à luta, quando a situação se acalmava, à beira do pântano, para alvejar os trens e a retaguarda das tropas alemãs retardatárias na guerra-relâmpago, cuja ponta de lança blindada já se adiantara.

Miguel continuou contando sua aventura por aquele pântano, terra úmida, rica de húmus e pululando de insetos incômodos. Os planadores continuavam a alimentá-los, a ele e aos outros atiradores, com armas, munições e comida. Os alemães, embora de modo esparso, continuavam a lançar alguns pára-quedistas na área.

Num dia escuro em que subia dos pântanos uma espécie de nuvem cinza, embaçando a vista por alguns metros prenunciando o outono que se aproximava, estando o Miguel a vigiar o céu, viu, rompendo a bruma, um pára-quedista, balançando nas cordas do pára-quedas, empunhando uma metralhadora e, aos poucos, se aproximando do solo. Escondido no mato, Miguel pôde ver então que era um rapaz bem jovem, não teria mais que 20 anos, forte, bonito, rosto quadrado, cabelo rente, descoberto. Miguel me disse, então, num tom tristonho que, naquele momento, não teve coragem de atirar no rapaz; alguma coisa, uma sensação estranha lhe travou o instinto de atirador e, mantendo a arma apontada, aguardou que o jovem soldado chegasse ao chão, quando ficou a menos de 200 metros do cano de sua metralhadora, por entre a folhagem.

- “Hoje - me falou Miguel – confesso que cometi, então, uma imprudência que poderia me ter custado a vida, mas não me arrependo”.

Mal o soldado se pôs em pé, de seu esconderijo, falando em alemão, Miguel gritou-lhe que se rendesse. Ao ouvir a advertência o jovem levantou sua arma e atirou. Miguel, experiente, já se deslocara e de onde foi se esconder atirou certeiro, atingindo a cabeça do soldado que se despedaçou, espalhando sangue e miolos em volta, debruçando-se no solo.

Nesse ponto da narrativa algumas lágrimas rolaram dos olhos do russo.

O velho ônibus se aproximava de Uruguaiana. Antes de chegarmos ao destino, refeito da emoção Miguel, me disse que matar na guerra se torna, às vezes, uma coisa banal, pois no front, no calor do combate, não se tem certeza de onde partiu o tiro que fez tombar o inimigo.

- “Mas, o projétil que estourou os miolos daquele jovem partiu diretamente da minha metralhadora”, disse chorando mansamente o velho atirador.

Confessou, com a voz embargada, que nunca mais conseguiu esquecer aquela cena, embora ele tenha prosseguido na guerra até 1945: naquele conflito que vitimou milhões de outros jovens como aquele soldado alemão. Nunca mais atirou com qualquer arma.

Na rodoviária de Uruguaiana Miguel me abraçou ainda emocionado, na porta do velho ônibus cor de aço polido, e tomou seu destino. Quando ia dobrar a última esquina virou-se em minha direção acenou com as mãos.

Nunca mais nos vimos.

Victor Hugo do Carmo - dezembro de 2010.

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