domingo, 18 de dezembro de 2011

E o meu afilhado ? (conto).

    No livro "Complexo do Alemão & Outros Contos", este escriba, em forma de ficção, conta a história do mendigo Roberto, perambulante no Centro do Rio de Janeiro.  Como, a rigor, não há ficção que não tenha um fundo de verdade, este conto que aí vai, prolonga o anterior e, de certa maneira, o completa.
Olhem só:
                                               A gente da rua.

                               O Comprido estava lá. O meu afilhado já não aparecia fazia tempo. A mulher esquálida que o Roberto Sinzeno apontava sempre como sua companheira, às vezes, aparecia. Eu relutava em perguntar-lhes. Intimidade com mendigo é um negócio difícil. Não por eles, mas pelo preconceito social do qual a gente tem dificuldade de se desvencilhar. Hesitava em perguntar-lhe o que havia com o “meu afilhado”.
                              A mulherzinha mulata que faz, sentada no respirador do Metrô, intermináveis flexões abdominais e parece ter coluna de seda, estava lá todo o dia ao cair da tarde, no mesmo lugar, sobre a grade.         Ora pedia, ora recusava minha esmola. Só me olhava com aqueles olhos compridos e embaçados. Ela também não disse nada; nem me lembro agora se cheguei a perguntar-lhe. Era imperativo perguntar pelo "meu afilhado"; mas me faltava coragem. A última vez que eu o vira estava semimorto, ferido no sobrolho; a boca dilacerada, espumando de cachaça. A catinga, mau cheiro característico, tornara-se mais insuportável, como se isto fosse possível. Perguntei-lhe então:
                    “Você está bem, Roberto? “
                     “Que nada meu padrinho tô fudido. Fiquei uns dez dias, não sei quantos, internado no Souza Aguiar. Levei um tombo; foi a cachaça que me empurrou”. Falou e riu seu sorriso desdentado.
                        "Tá melhor agora?”
                         “Sei lá; já não tenho forças pra pedir esmola, nem apetite pra comer”.
                         “Te cuida Roberto”,
falei e fui andando mais depressa, descendo as escadarias do Metrô.

                           Afinal, passado algum tempo, criei coragem para indagar.
                          O Comprido estendia a mão à beira da calçada, junto da estátua do centenário da Independência. O cheiro de mijo subia-lhe pelo corpo magro e penetrava no meu nariz inflado. Resisti. Saquei uma moeda e, enquanto a punha na mão dele, fiz a pergunta engasgada:
                             “E o Roberto ?".
                             “O seu afilhado?”.
                               "É.. é ...”.
                              “Bêbado, ele tomou um tombo na rua, ali perto da Biblioteca Nacional; bateu com a cabeça no meio-fio e morreu no Hospital Souza Aguiar; foi recolhido e jogado na vala comum no Caju".
          " Este é o nosso destino doutor; da gente que vive nas ruas”.                 Falava e ria.

                              A morte do companheiro de miséria parecia para o Comprido ser coisa corriqueira. Não lhe vi nos olhos, nem na cara macerada qualquer sinal de emoção.
                              “É , meu companheiro, seu afilhado se foi!” ele disse por fim.
                              Até que eu tentei disfarçar a emoção, mas não pude conter algumas lágrimas. O Comprido notou e virou-se pra mim:

                                “Meu amigo, não chore por ele, pode atrapalhar a subida da alma dele pro céu”.

E tornou a rir seu riso sem dentes.



VHCarmo.

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