quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

No tempo das trevas... (Texto ficcional).

                                                  No Mercado das Flores.
                                                                conto

                                               Era uma sexta-feira e Manoel Torres, àquela hora  - 6,30  da manhã de um dia de primavera em 1969, já se encontrava sentado no ônibus da linha 249, a caminho do trabalho. Saia de casa sempre bem cedo. Seu emprego no Mercado das Flores era dedicado à Contabilidade dos comerciantes, à seleção das plantas e flores para distribuição matinal e marcação de preços.
                                              Manoel ia pensando sobre a sua vidinha de tijucano. Fizera 50 anos, sem festas, sem emoção. Recebeu alguns telefonemas de parabéns; de alguém reclamando por festa; nada mais do que isto.   A vida não lhe fora particularmente propícia em momentos felizes, ia pensando. Também não podia queixar-se; nunca passara necessidade. Filho único, seus pais portugueses, já falecidos, eram pessoas de classe-média e puderam lhe dar escola, educação e encaminhá-lo na vida; se  ele não caminhou mais deveu-se à sua própria acomodação. Tinha onde morar, pois lhes deixaram o apartamento de dois quartos da Rua dos Araujos, na Tijuca. O que ganhava no Mercado das Flores dava para sobreviver com certa dignidade.
                                            Os últimos fios de cabelo que manejava para cobrir o alto da cabeça caíram pouco antes do aniversário, sobrando-lhe, apenas, outros poucos ao lado das orelhas e sobre o pescoço. Agora, além de cinquentão, se sentia um careca. Aquilo lhe dava uma certa tristeza. Nada lhe doía mais, porém, do que a vida sem emoções, rotineira e, até certo ponto vazia que levava; mas se conformava. No pequeno escritório onde fazia as contas e controlava seus papéis, mal cabia uma escrivaninha, dois armários e duas cadeiras. Na verdade lhe sobravam – para quebrar a monotonia - as discussões diárias sobre futebol e assuntos rotineiros do dia-a-dia, nos boxes de venda das flores no entorno do Mercado, que percorria no desempenho de seu trabalho que era comandado pelo gerente-geral, Seu Constantino.       Manoel fazia uma restrição nas suas discussões: não falava sobre política. Dizia que não gostava de política porque ela dividia as pessoas. Afirmava, com certa ênfase, que, naquela época, país vivendo sob ditadura militar, era melhor mesmo se manter calado, assegurando sua paz.  
                               “-Não nasci para ser revolucionário”, dizia. “Quero viver em paz”. "Não sei de nada; quem sabe  foi obrigado a esquecer..."

                         Torres, como o contador Manoel era chamado no Mercado, gostava mesmo era de passear por entre as ramagens e flores e se habituara a sorver o perfume que delas emanavam, isso parecia lhe bastar.           
                          Aquele local perfumado tem sua história que lhe encantava. A praça do Mercado das Flores que, a partir de 1918, leva o nome do poeta Olavo Bilac, nasceu pela demolição de um prédio existente no local onde funcionava uma repartição fiscal do segundo império, ligando a antiga Rua dos Latoeiros - hoje Gonçalves Dias -, que ali terminava, à Rua Buenos Aires - antiga do Hospício, por um beco estreito, era o Beco do Fisco. Por muitos anos povo ainda chamava a praça e o mercado de Beco do Fisco. Por duas vezes o Mercado foi restaurado; no governo Epitácio Pessoa, pelo prefeito Carlos Sampaio e mais recentemente tomou a configuração atual projetada pelo famoso arquiteto Sérgio Bernardes.
                           Manoel Torres se casara cedo, aos 23 anos e, prematuramente, ficou só. A mulher não suportou a convivência sem graça que mantinham e se divorciaram. Ele até achou bom; falava, para quem quisesse ouvir, que não tinha mesmo vocação para ficar amarrado a uma mulher. Sua ex-mulher nem despesas lhe deu, pois logo em seguida arranjou outro casamento. “– O defeito era meu”, plocamava.
                               Naquela manhã de sexta-feira, com a perspectiva da proximidade do Domingo em que iriam jogar no Maracanã o seu Vasco da Gama, justamente contra o seu maior rival o Flamengo, Manoel antevia uma tarde menos monótona; já estava com o ingresso comprado. Comprara entrada também para o seu amigo, o Negão, com quem gostava de discutir futebol. Negão, cujo nome era Augusto, era flamenguista e trabalhava também no mercado e seu amigo mais chegado.
                                     O empate, de 2 a 2,  no jogo foi bem recebido por ambos.     Na porta do estádio, naquela noite de domingo, se despediram, ele foi pra Tijuca e o amigo para Niterói.
                                     Na segunda-feira, o Negão estranhou que ao chegar ao Mercado, já pelas nove horas, não encontrou Manoel. “-Ele não faltaria sem avisar; sem sequer telefonar, ele era demasiado pontual”; se intrigou. Resolveu esperar um pouco. Já era meio-dia, quando decidiu ir procurar o companheiro. Augusto sabia que ele morava sozinho e receou que pudesse ter acontecido alguma coisa grave com ele. Foi-se para a Tijuca.
                                   Subiu ao terceiro andar do velho edifício da Rua dos Araújos, e encontrou a porta do apartamento aberta; notou sinais de arrombamento. Penetrou devagar e encontrou tudo em seus lugares, apenas, no quarto, a cama estava desarrumada. Não havia sinais evidentes de roubo. Ficou, inicialmente, sem saber o que fazer, depois desceu ao térreo e procurou Seu Miguel, dublê de porteiro e faxineiro que, àquela altura, fazia limpeza nos corredores do prédio. O homem se mostrou assustado. Em princípio recusou-se a falar. Depois, foi dizendo, meio trêmulo:
                              – “Olha Ausgusto, me pediram pra não falar; calar o bico. Por favor, não diga a ninguém que eu falei, mas levaram o homem encapuzado e algemado; tinha um fusca preto parado lá fora. Empurram Seu Manoel pra dentro e se foram. Pelo amor de Deus, eu não vi nada!”.
                                 Augusto correu à Delegacia Policial da Tijuca e lá não encontrou Manoel. Um investigador de plantão, sendo informado da forma como Torres fora preso, foi logo dizendo que aquilo era coisa da "repressão":    “– o homem deve estar na Barão de Mesquita, 425”.
                                    Naqueles tenebrosos tempos da ditadura militar, havia em todas as pessoas um certo medo de envolvimento com os militares, por isso o Negão resolveu procurar um advogado para  localizar o Torres e não se expor .
                                   Dito e feito; passados dois dias, o causídico escolhido comunicou ao amigo e ao gerente do Mercado, Sr. Constantino, que localizara o Manoel no DOI-CODI, na Rua Barão de Mesquita, 425; fora preso por ato de subversão contra o regime. Provavelmente seria solto no dia seguinte ao meio-dia, após a devida apuração. O advogado combinou com os dois, e ambos, mais o advogado, foram esperar o Manoel, à porta do quartel na hora marcada. O gerente não se conformava com o motivo da prisão. Para ele o empregado jamais  estivera metido em subversão, haveria algo errado. Augusto, por sua vez,  se exasperava, as lágrimas rolaram mansa no seu rosto negro.
                                   Os militares foram pontuais, ao meio-dia, apareceu-lhes um sargento e confirmou que Manoel estava saindo; seria conduzido para sua residência. Pelo portão lateral apontou, então, uma ambulância; era o veículo que iria conduzir o preso à casa. Foi negado pelo militar, delicadamente,  a qualquer acompanhante  ir no veículo. A ambulância partiu; o advogado, o gerente e o Negão foram acompanhando, de táxi.   Na Rua dos Araujos, o Manoel Torres foi retirado da maca, onde se encontrava deitado e entregue claudicante, andando com  extrema dificuldade, amparado pelos que o  esperavam.  O militar que conduzia o veículo passou à mão do advogado uma folha de papel onde estava escrito que Manoel fora objeto de um lamentável engano, o homem que procuravam era um seu homônimo; não era ele. O papel estava sem timbre e assinatura....
                                      Em 4 dias de prisão Manoel  Torres perdeu 7 quilos e sofreu várias lesões no corpo e na autoestima. Fora torturado barbaramente. Foi levado para um hospital onde permaneceu internado em recuperação física e mental por mais de vinte dias.  Saiu irreconhecível.
                                      Passado algum tempo - cerca de dois meses - Manoel Torres, recuperado, teria que voltar ao  trabalho, mas desapareceu do emprego e do da Rua dos Araujos.   Nunca mais foi visto no seu Mercado das Flores.
                                      Soube-se, depois de alguns anos - retornada  à Democracia - de  notícia trazida   por um sobrevivente: ele foi morto na Guerrilha do Araguaia.  
                                        Até hoje, procuram-se seus restos mortais para lhes dar uma digna sepultura.

Outubro - 2009.
VHCarmo.

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