sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ALGO MAIS É UM CONTO...


                          O Coveiro Chico Felício.

Eu era ainda criança, mas me lembro bem daquela época.  A mineração nos alagados da Fazenda da Praia, do Bananal e redondezas atraíra muita gente para a Vila do Capivara em busca do ouro de aluvião.  A Vila teve  um inchaço e gente de todo o tipo apareceu.    Nos anos 30 do século passado  o lugarejo viveu um sonho de riqueza que depressa se esvaziou. O ouro era pouco e não satisfazia a ambição de tanta gente.

A febre de riqueza frustrada deixou saldo.  Houve uma modernização na Vila que se irradiou pelos distritos.  Cisneiros, à beira do Rio Pomba, tornou-se a sede dos galpões de guarda do café e, posteriormente, local da queima. No    BancoVerde instalou-se a Congelação para esfriamento e transporte do  leite colhido nas fazendas do Município.

O que interessa para o que vou narrar  agora foram os matizes humanos que se integraram à história da Vila do Capivara.  Da velha Sá Rita que alargava as saias imensas e despejava a sua mijada pelas ruas, do Fião, figura de Cristo de olhar de azul profundo e silêncio enigmático, o velho Sancler e o seu mau olhado, o Genésio varapau profético e tantos e tantos dos que já me referi.

De um deles eu já me ia esquecendo: foi o Chico Felício, o  coveiro. Antes de aparecer por ali não era conhecido. Diziam alguns que veio do vizinho  Espírito Santo, talvez fugido de algum crime. Nunca se soube ao certo. Certo que o antigo coveiro, um tal de Galiano, tinha falecido e o Chico Felício o substituiu sem maiores formalidades.

Como todo coveiro que se preze  Felício, encarnava o seu papel. Era soturno, de tez pálida, de olhos amarelados, mediano na estatura e caminhava sempre de cabeça baixa coberta por um chapéu de feltro já surrado.  Metia medo às crianças.  Foi morar no Mato Dentro bem perto do cemitério.  Ele mesmo ergueu seu  rancho de taipa coberto de sapé e, o inusitado, fez uma cama sobre o teto do rancho onde nas noites secas e quentes de verão ia dormir.

Algum tempo depois de se tornar coveiro e zelador do Campo Santo, o Chico Felício se juntou com uma viúva, Dona Clara,  que morava na Rua do Jardim e tinha uma filha de nome Marcela.  Foram morar os três no rancho do Mato Dentro.    Marcela era filha do padre Bruno  pároco da Vila.  Adolescente muita bonita nos seus 12 anos, se afeiçoou ao Chico e era como se fosse sua filha.  Era a única pessoa que fazia o soturno coveiro sorrir.

Os cuidados do padre com Marcela perturbavam o coveiro e lhe causavam  incômodo,  pois a paternidade do padre era negada por ele aos fiéis, embora quase ninguém a ignorasse.

Chico se exasperava quando o padre Bruno, às escondidas, vinha ao rancho a visitar a filha e se punha a conversar com Dona Clara.     As visitas do padre,  por mais escondidas,  chegavam ao conhecimento do povo da Vila e eram comentadas até pelos boêmios do bairro e do  Bar do Benedito.

Chico se sentia deprimido com a situação e mesmo a contra-gosto interpelou o padre Bruno e lhe fez ver como se sentia envolvido com as notícias que circulavam de suas visitas ao seu rancho. Nem por isso o pároco deixava de ir lá sempre pela noite e pelas madrugadas.

Claro que de visitas à filha de sua ex-amante, as línguas de trapo do Bar, julgavam o pobre do Chico ser como alcoviteiro do padre Bruno e  da Sá Clara. 

Soturno, cabisbaixo, calças arregaçadas até à canela, sapatos rotos,  o coveiro passava pelas ruas da Vila, sob os olhares maldosos do povo. Até as beatas da Irmandade do Coração de Jesus  cochichavam entre elas sobre a vergonha do trio do Mato Dentro.

O Felício passava, então, todo o dia e parte da noite no cemitério, arranjando algo que fazer entre os túmulos ou sentado num canto curtindo um certo rancor contra o padre que, a cada dia, ia se acumulando.

Foi o dia de decisão. Era uma sexta-feira da quaresma e as solenidades próprias  se desenrolavam na paróquia presididas pelo padre Bruno.   Final de noite, terminada a bênção do Santíssimo, o Chico se postou em frente a Casa Paroquial a espera do padre.     Bruno se  assustou com aquele vulto à porta, mas não recuou.  

Nunca se soube ao certo o que foi dito pelo coveiro nem da reação do padre.

Passada a Páscoa, num belo dia de sol, Bruno, Sá Clara e Marcela embarcaram na estação da Leopoldina Railway em direção à Capital.    Nenhuma notícia foi deixada e a Vila ficou sem pároco durante mais de um ano até o Bispo de Leopoldina nomear outro.

O Chico Felício andou algum tempo, pela Vila, de cabeça erguida; depois cumprindo o seu papel voltou a caminhar cabisbaixo e taciturno.

VHCarmo.

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