quinta-feira, 19 de maio de 2011

Ligeirinha é um conto (para quem ainda não leu).

                                          A gordinha de Olaria.

                                                 (conto)
                                   Foi em Olaria, subúrbio do Rio de Janeiro, no verão do ano de 1955. Eu e minha família morávamos numa casa e na casa vizinha, do lado direito, viviam Da. Lindalva que era viúva, o filho Pancrácio e sua mulher Chiquita. A Chiquita era gorda, dessas que as pessoas chamam de gordinha ou por carinho ou para não ofender. Tinha as ancas largas e uma bunda grande, se bem que bem feita. Digo bem feita por que há bundas grandes e pequenas que não são bem feitas e não conferem atrativo. A dela não. Era daquelas que os velhos paravam para olhar para trás quando por ela cruzavam na rua. Tinha o rosto rechonchudo e muito branco, cabelos negros. Os olhos da cor de caramelo tinha um jeito esquivo como uma Capitu de subúrbio.
                                    Até que ela tinha uma boa voz, mais para contralto. Gostava de cantar. Naquele dia, porém, cantava sem parar e a mesma modinha, forçando o estribilho:
Teu mal é comentar o passado  
Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois ...
O Peixe é pro fundo das redes,
segredo é pra quatro paredes.....
O peixe é pro fundo das redes...

                                           Ia do quarto para sala da velha casa de subúrbio. Da sala para a varanda e daí soltava mais forte a voz, marcando as notas e as palavras. Às vezes subia o tom, parecendo querer chamar a atenção da vizinhança. A velha sogra, dona Lindalva, coitada, atarefada na costura mal podia se levantar da máquina e, embora achasse estranha aquela cantoria, imaginava que sua nora estivesse muito alegre. Com a morte de seu marido, dona Lindalva tinha na costura o seu ganha pão a completar a precária pensão da previdência social que o finado lhe deixara, após mais de 40 anos de trabalho.
                                       O dia era Sábado. Naquele tempo em que o Sábado era dia útil e todo mundo trabalhava. Até o Pancrácio, que não era muito afeito, foi trabalhar, pois era o dia do pagamento. Faltar por faltar, faltaria outro dia.  E assim foi por toda a manhã. A Chiquita e a velha almoçaram quase sem se falar. A nora, depois do almoço, foi lavar a louça e arrumar a cozinha como era de hábito, mas sempre cantando e sempre a mesma música, repisando o verso

Segredo é pra quatro paredes...

                             Lá por volta das cinco da tarde a Chiquita se meteu no quarto de casal, onde dormia com o Pancrácio, seu companheiro de mais de dez anos, embora não fossem casados. Sem parar de cantar, foi arrumando vestidos e peças íntimas e pequenas coisas de uso diário numa bolsa de lona dessas fechadas com fecho na parte superior. Depois tomou banho, esbanjou sabonete importado, com cheiro de maçãs e saiu do banheiro toda perfumada com um perfume que o companheiro lhe dera pelo Natal, quando recebeu, embora com atraso, sua gratificação do ano anterior.

Teu mal é comentar o passado....
                            cantava, caprichando na voz de contralto, espichando as sílabas.
                           
                                Anoitecia quando a Chiquita parou de cantar, tomou nas mãos a bolsa com suas coisas e de pé ante pé para não chamar atenção da velha, debruçada sobre a máquina de costura, atravessou a sala empurrou de leve a porta e ganhou a rua, deixando apenas o perfume forte de lavanda. Não cantava mais. O silêncio, no entanto, parecia repetir:

Segredo é pra quatro paredes ...

                                 O Pancrácio não era homem de chegar cedo em casa. Ainda mais num Sábado – e era verão. Foi direto ao boteco costumeiro. Bebericou com o amigo de fé, o Orozimbo, e com outros nem tanto: o Zózimo, o Antônio Nariz de Ferro, o Cheiroso, um espanhol que vivia a beira do alcoolismo e tinha cadeira cativa no estabelecimento. Comentou sobre suas fugas extraconjugais e sobre as mulheres (ah! as mulheres). Aquela tarde noite ele estava particularmente alegre. Ria por tudo. Abraçava a todos com efusão e chegou, pasmem, a jurar seu amor pela Chiquita quando lhe exaltavam a coragem com que se atirava às aventuras extraconjugais.
                   –Nada como o calor da minha gordinha. É aconchegante. Dizia em voz alta.

                               Na sua empolgação passava em revista as mundanas, as verdadeiras paixões, as fugas do trabalho para o motel. Muitas das aventuras eram verdadeiras outras: nem tanto.

                             O Orozimbo acompanhava sempre com atenção as prosas do Pancrácio, com paciência e até o incentivava a contar sempre mais. Os outros já não tinham tanta paciência. O dono do Botequim, o Justino era, como quase todo o dono de botequim suburbano, um tipo pálido, filho de um português que viera para o Brasil nos anos 30 e manejara durante muitos anos um “burro sem rabo” com o qual amealhara o suficiente para comprar o sobrado em cuja loja térrea instalou o boteco para o filho e morava encima.
                           Pancrácio era meio boêmio, não um boêmio integral. Cerceava-lhe a vocação boêmia a sua fragilidade digestiva. Queixava-se da vesícula, da boca amarga e lá se ia para casa tomar seu chá de boldo mais cedo do que os verdadeiros boêmios que varavam a noite. Ia em busca da sua gordinha, mortificado pelos exageros com que fantasiava as suas modestas aventuras extraconjugais. Era franzino, narigudo, meio pálido e tinha olhos de cor indefinida puxado para escuros.
                           Naquele Sábado, já eram dez e meia da noite quando empurrou de leve a porta da sala, pois naquele tempo não se trancava a porta senão quando chegasse o último morador. Era um saudoso tempo em que só se tinha notícia de ladrões de galinha que pulavam o muro do quintal. Entrou, procurando não fazer barulho para não acordar nem a velha que, pobre, trabalhara o dia inteiro sem parar, nem a sua gordinha.        Pensou: - a Chiquita podia não estar num bom dia (ou noite) e iniciar uma interminável discussão. Melhor era não acordá-la. - Amanhã, Domingo, tudo não passará de um diálogo. Ele era mestre em improvisar mentiras sem maldade e até daquelas que despertavam algum interesse. Por outro lado, ele confiava no amor da mulher e na sua fidelidade, coisa que apregoava de peito aberto, não só no boteco, mas em toda parte a para todos que tinha intimidade. E quem sabe, pela manhã, fariam até amor.
                                  Quando a Chiquita saiu teve antes o cuidado de colocar dois travesseiros, ao comprido, debaixo das cobertas da cama, imitando um corpo.
                                  O Pancrácio tirou os sapatos na sala e, de pé ante pé, penetrou no quarto escuro, tirou sem barulho as calças e jogou-as sobre a cadeira que ficava no seu lado da cama. Deitou-se de cuecas e com a mesma camisa que vestia, tudo sem ruído. Embora estranhasse que a Chiquita não estivesse roncando. Depressa pegou no sono.
                                   Manhã seguinte, Domingo, a velha Lindalva que respeitava os dias santos de guarda, acordou cedo para ir à Missa e estranhou que a Chiquita que sempre lhe fazia companhia, ainda estivesse dormindo. O Pancrácio acordava mais tarde e aos Domingos a certeza de não precisar justificar a sempre desejada falta ao trabalho parece que lhe prolongava o sono e os sonhos.
                                  O Pancrácio acordou com o barulho da porta feito por sua mãe que voltava da Missa. Levantou-se e nem se deu conta de que a Chiquita não estivesse na cama. Certamente entrara com a mãe, pensou.          Saiu do quarto ainda sonolento e viu a velha Lindalva, botando a mesa do café.

– Mãe, indagou, a Chiquita não foi a missa com a senhora?
                              Lindalva estranhou:
Ué , exclamou, pensei que ela estivesse dormindo.
                               Pancrácio vasculhou a casa toda: nada da Chiquita. Telefonou para Daninha, irmã dela, também não sabia do seu paradeiro. Tentou localizá-la na casa de amigos: nada. Saiu, meio sem rumo, pelas ruas do bairro. Foi até a igreja. A missa acabara e viu apenas o sacristão a apagar as velas. Ia voltando atarantado para casa quando um moleque engraxate que estava sempre por ali dele se acercou:
-- Seu Pancrácio, o Justino do botequim pediu para o senhor ir lá.
                              Um raio de esperança cruzou a sua mente. Apressou-se. Teve ímpeto de correr, mas susteve a ansiedade. Chegando, foi logo perguntando ao Justino o que era.
                     - - Tenho aqui uma cartinha que alguém deixou para você.  E entregou ao Pancrácio um envelope branco, fechado, sem endereçamento.
                            Abriu com sofreguidão. Era da Chiquita o bilhete: o perfume era o seu.. Leu com o coração aos pulos:
                            “Meu querido companheiro de tantos anos, não tenho nada contra você mas minha vida estava ficando muita chata. Fui em busca de alguma emoção. Me queira bem... Seu mal “foi comentar o passado, ninguém precisa saber o que houve entre nos dois; o peixe é pro fundo das redes; segredo é pra quatro paredes”.
Obrigada por alguns momentos bons que tivemos e que foram tão raros.
Chiquita”.

No fim da carta, bem no fim do papel um PS:

                              “Pancrácio v. tinha razão: a gordinha é mesmo muito gostosa. O calor dela é aconchegante. Do amigo: Orozimbo”.
                            Terminada a leitura, o Pancrácio, lívido, pediu ao Justino um copo d’água, levou-o a boca, sorveu um gole e desmaiou, caindo no colo do Gostoso com a carta na mão. O espanhol, que àquela hora já estava bêbado, rolou com ele da cadeira e os dois foram ao chão. Devidamente socorridos, os amigos levaram o Pancrácio para casa.
                                A Chiquita e o Orozimbo sumiram no mundo. Nunca mais foram vistos.
                                 O Pancrácio mudou-se de Olaria com a velha Lindalva e não deixou o endereço. A carta que se soltou das mãos do infeliz, ficou com o Justino que adorava contar a história do Pancrácio e mostrar o escrito para comprovar a sua maledicência.

                               Muitos anos se passaram, um belo dia cruzei com o Pancrácio no centro da cidade, na Avenida Rio Branco. Achei-o já envelhecido. Semblante tristonho. Cumprimentou-me formalmente. Informou que Dona Lindalva havia falecido. Despedimo-nos. Quando eu já ia em frente, o Pancrácio voltou. Encarou-me. Tinha os olhos úmidos. Falou, quase sussurando:

– Ah amigo, o que doeu mais foi o PS.

E perdeu-se no torvelinho da grande avenida.

VHCarmo -
(Do livro Complexo do Alemão e outros contos)

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