sábado, 26 de abril de 2014

Algo mais é um conto... Sá Clara


Este conto, ficção escrita sobre um fato real, embora seus personagens tenham sido criados pelo Autor, pretendeu revelar a ambiência da Vila do Capivara ao fim do século IXX e princípios do século XX com a importância da Igreja Católica e o incipiente jogo político então vigente.   A Vila naquele tempo vivia um período de reltiva prosperidade com a lavoura de café. 

                                        SÁ CLARA.   
               Quando o padre Cota morreu de velhice,  depois de mais de 50 anos na paróquia de São Francisco de Assis da Vila do Capivara, instalou-se na pequena povoação um clima de expectativa.  Quem viria substituir o velho sacerdote, se indagava.   Por algum tempo, para missa dos Domingos, vinha celebrar o pároco da vizinha Cachoeira  Alegre; para as demais celebrações, batismo, casamento e  bênçãos    ou eram adiadas ou dependia do prestígio pessoal do interessado para   convocar  um padre de fora.   As encomendações dos defuntos, mais das vezes, eram dispensadas e recitada, apenas, uma oração, puxada por algum membro da Liga Católica.  Tudo isto causava séria contrariedade  aos católicos que, praticamente, constituíam a quase  totalidade do povo da Vila.   
 O vigário era uma referência local assim como o Juiz de Direito.  Aliás, a Paróquia e a Comarca já iam completar cem anos e   cogitou-se até, através do prefeito, Seu Antonino, fazer uma reclamação ou melhor um pedido ao Bispado da Diocese em  Leopoldina para preencher a falta, ressaltando a necessidade de um pároco nas comemorações.     Passado mais de um ano do falecimento do padre Cota, aproximando-se o centenário,  correu notícia na Vila de que fora  nomeado um novo pároco.    Soube-se também que era um italiano e  que vinha de Cataguazes onde fora vigário de uma das paróquias daquela cidade.    Instalou-se um  alvoroço no meio das Beatas, das Filhas de Maria e principalmente das velhas da Irmandade do Coração de Jesus e dos homens da Liga Católica.
 Era preciso preparar  uma recepção condigna ao novo pároco; arrecadar fundos para  mandar limpar a Matriz, dar um jeito na casa e  no salão paroquiais  e, quem sabe,  adquirir paramentos novos, pois o padre Cota, já muito velho, se descuidara da renovação das vestimentas e das toalhas que cobriam os altares, sem contar a limpeza, que seria necessária, das imagens dos Santos, inclusive a do Padroeiro.       Soube-se afinal -- e a notícia chegou trazida  pelo sacristão Zé Caolha  que fora a Leopoldina – que  o novo pároco iria chegar  dentro de 30 dias.  Era preciso correr.  
A lembrança deixada pelo padre Cota na Vila era de um verdadeiro santo e venerável ancião que, além das atividades religiosas, funcionava como conselheiro familiar e político.  Quase nada se fazia ali sem que o velho padre fosse ouvido.    Isto aumentava a expectativa em torno do novo pároco.   O Prefeito, afinal, foi comunicado. 
Chegou carta do Bispo, informando o dia da chegada do novo  vigário.  Caia num Sábado e no Domingo  ele já  celebraria pela primeira vez a missa na Matriz.  O nome do novo vigário era  Giovani Benedictus  e, como já se propagara  na Vila, tratava-se de um italiano havia muito tempo radicado no Brasil.   De fato, o padre viera da Itália ainda adolescente e ingressara no Seminário de Mariana, estimulado pela religiosidade da mãe     A carta não esclarecia  qual  o transporte  que  o vigário se utilizaria para chegar.   Este pormenor atrapalhou um pouco o preparo da recepção pois não se  pôde  saber, previamente,  o exato local onde  posicionar  a  Lyra, a  banda de música  que ira tocar quando o novo pároco penetrasse na Vila.     A questão foi resolvida pelo maestro Zé Messias, músico negro muito respeitado por seus conhecimentos.  Dividir-se-iam: uma parte dos músicos iria para a estação de estrada de ferro e a outra  para entrada da estrada  de  Cataguazes.
 Embora, às pressas, tudo foi  ultimado a tempo.   Bem que as imagens dos Santos não foram lá tão bem limpas: tirou-se, apenas, a poeira quase secular que as cobria.       O dia aprazado chegou, afinal.  Desde cedo a Banda de Música dividida se postou nos  dois pontos  combinados.   As Irmandades com o seu pessoal devidamente vestido com suas opas, fitas e insígnias, juntamente com o prefeito, o Delegado de Polícia, vereadores e demais autoridades se colocaram ao pé da Ladeira que conduz à Matriz.  O restante do pessoal se acotovelava atrás do grupo principal.  Lá estavam o Leontino, negro  da cabeleira de algodão,  conhecido  andarilho, pois tinha o hábito de ir até a Capital e de lá voltar seguindo os trilhos da estrada  de ferro, o Januário, mulato  meio lunático, que a molecada perseguia aos gritos  pelas  ruas e o  Brazinho latoeiro com seu vasto bigode.      Era gente de todos os recantos inclusive vinda das fazendas e dos sítios distantes.   A Vila do Capivara parece que ali estava toda. Muitas pessoas assomavam das janelas da casas da Ladeira e da Rua do Dó.    Por ali o padre haveria de passar.  
O trem misto que vinha de Cataguazes tinha horário de chegada às nove horas da manhã.    Estava tudo pronto antes das nove.      O trem chegou com atraso de 20 minutos e logo que penetrou a plataforma da Estação  a  parte da Banda que ali estava, pelo sim ou pelo não, pôs-se  a  tocar um dobrado festivo.    Parado o comboio, desceram algumas  pessoas, inclusive uma mulher bem morena de meia idade com uma mocinha um pouco mais  clara, desconhecidas no local; pareciam mãe e filha.   Nada do Padre.      O maestro Messias que palpitara a chegada pelo trem, vendo-se frustrado,   convocou os músicos a se apressarem e se dirigiram para a estrada   a se juntar aos  outros que lá estavam. 
 Eram 11 horas, o sol quente  de fim de primavera iluminava a copa das árvores e os raios  desciam filtrados  até o chão  de terra batida, quando despontou  por trás da Prefeitura, onde desembocava a estrada na Vila,  uma  Baratinha  Ford preta, levantando o pó do caminho.   A Banda de Música, já  então completa e regida pelo maestro Messias, irrompeu  com o mesmo dobrado.   Era o padre Benedictus que chegava. O veículo vinha conduzido por um  mulato de cara comprida e dentes muito alvos que se mostravam num sorriso luminoso.  O sacerdote vinha ao lado. Teria no máximo uns quarenta  e cinco  anos.   Rosto típico de italiano da Calábria,  de   ângulos  retos, cabelos negros  meio caídos sobre a testa larga,  nariz afilado.  Elegante, metido numa Batina pretinha reluzente.     Viu-se que não esperava aquela recepção tão calorosa e se mostrou emocionado, esboçando um sorriso simpático.       O carro foi indo bem devagar pela rua,  a banda tocando  atrás.   Chegaram juntos ao pé da Ladeira e  ao ver os membros  das Irmandades e aquele povão,   cercando o caminho,  o padre  mandou parar o auto e desceu se dirigindo às Autoridades ali postadas, se apresentando.  Uma mocinha das Filhas de Maria adiantando-se  trouxe-lhe  um buquê  de flores silvestres  e,  tendo a Banda parado de tocar o dobrado,  os  presentes começaram a entoar  um hino religioso, o “Queremos Deus...” acompanhados pelos instrumentos da Lira.
Depois, discursou o Prefeito, Seu Antonino,  que expressou a satisfação do Povo da Vila do Capivara pela sua chegada  desejando-lhe  felicidades e  uma longa permanência.   Falou o Delegado sobre amenidades e a paz que ali reinava  e o representante  da Liga Católica da importância que representava a sua missão. O padre agradeceu a tudo muito comovido.     O cotejo se dissolveu aos poucos, o Prefeito subiu ao veículo junto com o pároco e se dirigiram  à Casa Paroquial, ao lado da Matriz, onde os esperavam o sacristão Zé Caolha que iria servir de guia  e  mostrar-lhe os próprios da paróquia de que ia tomar posse.             
                            A mulher morena que descera do trem e a mocinha que com ela vinha se encontraram na plataforma da estação com a Sá  Conceição, moradora do  Mato Dentro. Tomaram um velho auto, a frete, e se foram com suas malas  para o aquele lugar que abrigava, naquela época,  a gente  pobre  da Vila   e as  mulheres da chamada vida fácil.
                        As moças Filhas de Maria, acostumadas com a  velha figura do  padre Cota  sentiram até uma certa  alegria de ver aquele homem bonito e cheio de vida que acabava de chegar.  Às mulheres de meia-idade  e  às  mais velhas, da Irmandade do Coração de Jesus,  causou um certo desconforto;  lhes parecia que aquele moço não encarnava a figura respeitável de um pároco.    Aos homens, da Liga Católica,  a questão pareceu indiferente, pelo menos  naquela ocasião.   
                            Vida que segue. O Padre Benedito -- assim simplificaram logo o seu nome -- aos poucos foi tomando o seu lugar não só na paróquia como também na vida da Vila.       Era um homem envolvente.  Pregava bem e, embora com leve sotaque italiano, seus sermões eram apreciadíssimos.  Discorria sobre os evangelhos e fazia deles ilações bem humoradas e espirituosas.  Espírito aberto, era adepto  das idéias progressistas em voga naquela primeira metade do século XX, período marcado pela  industrialização do país e o surgimento organizado da classe operária,  e  do Partido Comunista.    O Padre fazia rodar na sua velha vitrola, que o acompanhava sempre, as operas italianas e cantava árias inteiras na sua agradável voz de tenor. Aos poucos foi introduzindo uma forma nova no trato dos paroquianos. Era gentil, comunicativo e se aproximava das pessoas  humildes.   Passou a promover reuniões beneficentes no salão paroquial, não só com os homens, mas também com as  mulheres, sobretudo , com as moças às  quais se mostrava sempre muito à vontade.  Apesar de tudo, a lembrança do falecido  padre Cota, permanecia forte, principalmente entre as Beatas, na Irmandade do Coração de Jesus e na velharia da Liga Católica. 
                             A maledicência do povo da Vila começou a aflorar. Ao Padre Benedito lhes parecia faltar aquela circunspecção a que estavam habituados no falecido padre Cota.   Para muitos as missas na  Matriz  se tornaram  festivas demais, pois o padre  arranjara de  as acompanhar até com músicas profanas.      A sua intimidade com as moças incomodava àquela gente preconceituosa.   A rapaziada foi atraída para Igreja, pois gostava do jeito moderno do pároco.             Grassou no lugar, porém, uma desconfiança quanto à fidelidade do padre aos   votos de castidade.   O pessoal da Liga Católica em sua maioria  fazendeiros e sitiantes  -- os mais hipócritas  -- se pôs a investigar secretamente a vida íntima  do padre.  Julgavam-no, além de mulherengo, propagador de idéias “estranhas”.   Um deles foi até a Cataguazes a  pesquisar  a vida pregressa do vigário.                   
           A mulher que desembarcara do trem  no mesmo dia da chegada do padre, chamava-se Sá Clara, a moça  era a Nilzinha.   Elas foram aos poucos se enturmando com o pessoal da  Vila que as olhava,  no entanto,  com uma  certa desconfiança. Custava admitir a sua presença constante nas reuniões do salão paroquial, coisa que o pessoal do Mato Dentro jamais se atrevera fazer.  Intrigava a todos, principalmente aos mais conservadores, terem elas chegado na Vila no mesmo dia que o padre Benedito desembarcou.    Para piorar o mal-estar, a mocinha aparecia sempre toda  pintada, de vestidinhos justos com decotes generosos,  mostrando seus belos seios; de saias curtas exibindo  as belas  pernas e coxas  bem  torneadas.   O Padre Benedito, por outro lado,  não conseguia esconder  seu carinho pela moça e a atenção que dispensava a Sá Clara.
                               A Nilzinha se pôs a namorar  o Juca Bem Bem,  freqüentador assíduo do rancho onde morava a moça.   Lá ia jogar a víspora com a  rapaziada boêmia.   O moço era casado e conhecido como o  galanteador das damas”.  A situação se complicou, pois o Juca era o tipo que os hipócritas daquela sociedade atrasada não toleravam.       O namoro parecia não agradar também ao padre.                 
                                De simples rumores, a ligação do pároco com a  Sá Clara e  a  Nilzinha  passou a ser encarada com desconfiança.     Alguém que se manteve  covardemente no anonimato  espalhou a notícia de que o pároco freqüentava o rancho da Sá Clara pelas madrugadas.   Teria sido visto de lá saindo. Apareceu logo depois  um panfleto de autoria também anônima,  colocado nos bancos da Matriz, antes da missa do Domingo, dizia entre outras coisas  que a moral religiosa da Vila estava em perigo.  Instava que o Prefeito deveria tomar as providências junto ao Bispado, embora não indicasse quais as medidas pretendidas.   Inferia-se, logicamente, que se cogitava do afastamento do vigário.
                     O padre Benedito continuava, no entanto, a captar a simpatia das moças e dos rapazes e de muito mais gente.  A igreja floria.  As reuniões se amiudavam e a  assistência  social se tornou efetiva.   A opinião sobre o pároco ficou  dividida.    A Liga Católica e a Irmandade do Coração, em sua maioria compostas de pessoas mais velhas, manifestavam uma indisfarçável  má vontade  com o  vigário, pois se julgavam os guardiãs  da moral da Vila.  A gente jovem cada vez gostava mais dele. A coisa foi-se agravando.  De problema restrito passou a fato importante no lugar. 
                O vigário parecia não tomar conhecimento  da situação; ia vivendo sua vida. Comprara um belo cavalo baio, encarregando o sacristão Zé Caolha de o tratar no pasto de São Francisco.    O animal reluzia o pêlo do bom trato e o padre fazia uma bela figura  nele montado, com arreios e selim revestidos com adornos  de prata. Abandonou até a baratinha na garagem.   Diga-se de passagem: se mostrava um tanto imprudente pois  era visto a cavalgar, de dia, pelas ruas do Mato Dentro.   Dizia-se que ia visitar os paroquianos mais pobres.
            Nem bem fizera um ano da posse do padre na paróquia e a sua situação já estava se tornando insustentável.  A divisão ficou bem nítida.  Os conservadores das Irmandades se mostravam inconformados com o comportamento do vigário.  Era, para eles, demasiado moderno e já não tinham dúvida de suas ligações com a Sá Clara e a Nilzinha, embora não apresentassem prova concreta.  As Beatas chegavam a ver na mocinha  a cara do vigário.   Avançavam nas suas suspeitas e já diziam à boca pequena que se tratavam de mulher e filha do padre.
                          Por mais que pretendesse fingir que não percebia a situação, o pároco  já tinha motivos para se  preocupar. 
                Como sempre soe acontecer nesses casos,  a relação entre as duas correntes, que  assumia um viés político, veio a  pender para a  radicalização.   Uma comitiva dos conservadores foi  ao Prefeito e ao presidente da Câmara;  pleiteava  daquelas autoridades interferir  junto ao  Bispo para afastar o padre Benedito da paróquia.   A corrente contrária, ao tomar conhecimento do ocorrido, se  organizou em comitiva e se dirigiu às mesmas autoridades  se manifestando  pela permanência do padre.
                               Os anticlericais cujo núcleo na Vila provinha da imigração italiana, inclusive com um pequeno número de anarquistas, se reuniam na barbearia do Ribeirinho, um judeu português muito considerado no lugar.   Seu estabelecimento ficava na Rua Direita  ali tomaram uma decisão contraditória: engrossaram,  por unanimidade,  a posição dos conservadores.     Configurou-se, então, aquilo que sempre  acontece:  os extremos se tocaram.   Esmeravam-se em explicar sua decisão, mas não convenciam.  Julgavam-se revolucionários e estavam apoiando a direita   hipócrita; não dava para entender.
                    Político é sempre político, mesmo naquele povoado perdido entre as montanhas onde o tempo escoava manso e vagaroso como o ribeirão capivara que banhava o vale.      Nem o presidente da Câmara nem o Prefeito deram declarado apoio a qualquer das correntes; ficaram encima do muro.   “Era preciso conversar. Tomar uma decisão democrática”.  Lembravam que a Vila ficara muito tempo sem vigário fato que  não podia se repetir.  Por sugestão de um dos vereadores, representante do Distrito de Cisneiros  foi combinada uma reunião  entre os legisladores, as duas partes e o Prefeito.   Haveriam de chegar a um ponto comum.    A reunião se daria daí a  alguns dias,  no próprio plenário da Câmara dos Vereadores na Praça  do Foro. 
Discussão acalorada e tentativa de acomodação dos políticos.    Foi do Prefeito o que parecia uma solução e, em princípio, as duas partes  se puseram de acordo.   Sugeriu o edil fazer uma  votação, mas  a consulta seria de modo indireto, ou seja, os votantes teriam que se manifestar  contra ou a favor da permanência da Sá  Clara e sua filha no Mato  Dentro e na Vila do Capivara.   Contra elas poder-se-ia alegar procedimento escandaloso  e exercício da caftinagem.  Uma forma de não envolver o padre e o bispado.   “Ora, afastadas as mulheres, desapareceria o motivo de tanta celeuma”  afirmou o Prefeito. 
 A solução conquanto violentasse a consciência de alguns presentes  foi,  aos poucos, admitida por ambas as correntes.  Não ficou bem claro, qual seria a fórmula a adotar para obrigar as mulheres a abandonar a Vila.   Outra dificuldade se apresentou: era preciso definir quem  teria o direito de votar.  Após mais algum debate chegou-se a um consenso:   votariam, além dos políticos , os membros das  Irmandades das Filhas de Maria, dos   Congregados Marianos, do Coração de Jesus e  da Liga Católica.   Foi lembrada a dificuldade de se reunir  tanta gente.  A solução foi logo encontrada, as duas partes indicariam, cada uma, cinco representantes e junto com os Vereadores e o Prefeito formariam o colégio votante.    Tudo acertado, exigiu-se de todos manter reserva sobre o acordo. 
A votação se daria, no Domingo seguinte.   O que,  também,  não ficou bem  claro é se , na hipótese de vencer a corrente pró vigário, isto  implicaria ou não no reconhecimento da sua ligação com a   Sá Clara e a Nilzinha.   Mais discussão. Venceu a hipocrisia reinante: neste caso admitir-se-iam  as mulheres integradas na vida  paroquial e seriam  esquecidas as ligações com o pároco.  Não se falaria mais no assunto.
                      O Padre Benedito continuava a se manter alheio.  Se sabia da trama, fingia que dela não ter conhecimento.   Era visto sempre rodeado dos jovens -- moças e moços-- os cabelos esvoaçantes caindo descuidados sobre  a testa larga.  Continuava a cavalgar pelos bairros da   Vila o seu ginete baio; a batina recolhida entre as pernas, a calça de zuarte exposta.   Ia ao Santo Antônio, à Rua do Sapo,    Rua de Baixo e ao Banco Verde. Visitava os Distritos, as Fazendas e Sítios. Conversava alegremente na porta das lojas da Rua Direita e no boteco do Benedito.  Não deixava de ir ao Mato Dentro onde, apenas, evitava de ir à noite.   Era uma simpatia só.     Inegavelmente tinha a preferência da maior parte das pessoas.     Isto, no entanto, não lhe bastava para o sucesso da votação secreta que iria definir, de certo modo,  o seu destino.  
 Em lâmina municipal se revelava ali o jogo duro da direita conservadora e a alegria festiva e  irresponsável da esquerda jovem.  Doía às moças e rapazes, designados a votar,  que pudesse o vigário ser  vítima de  uma traição.    Sobretudo não viam escândalo algum na relação do vigário com a Sá Clara e  muito menos com a Nilzinha que era muito simpática, muito  dada e se fizera integrar ao grupo deles.  Afinal nada se provara e se havia algo era muito escondido.
                       A Vila do Capivara, àquela época,   ostentava ainda uma certa prosperidade  advinda da cultura cafeeira.   A movimentação da colheita nas fazendas  o embarque do café nos trens da estrada de ferro produziam um intenso movimento de pessoas, embora sazonal,  inclusive de estranhas ao lugar, quebrando, às vezes, a tranqüilidade habitual.     O Mato Dentro era o local onde muita gente se reunia, então, as noites de diversão, com a sanfona tocando, a cachaça  rolando e as raparigas  livres esbanjando o seu charme, principalmente nas noites dos Sábados  para as dos Domingos.   Os fazendeiros hipócritas da Liga Católica se deitavam  com suas amantes, esquecidos da moral que pregavam lá fora.       Instalou-se ali também o assunto máximo da Vila, o destino do padre Benedito.   As “meninas” a serviço do amor manifestavam sua simpatia pelo padre.  A rapaziada freqüentadora era ligada ao pároco.       Os fazendeiros, hipocritamente, saiam de fino pela noite,  sem  defender a sua opinião.
                   O dia da eleição chegou.  Tudo foi feito para despistar os curiosos.  Os escolhidos se reuniram à noite, quando a Vila já adormecera.   Os votantes se trancaram no velho prédio da Câmara. Aos debates que se prolongaram até a madrugada seguiu-se a votação.  O dia primaveril vinha raiando quando a comissão apuradora  proclamou o resultado.   O Padre Benedito vencera.     A velharia não se conformou com o resultado; a rapaziada e as moças vibraram.    Foram levar ao padre o resultado na casa paroquial e daí partiram para o Mato Dentro que se engalanou em manhã festiva com a Sá Clara e a filha.    O Prefeito recusou a impugnação tentada pelas Irmandades.   “O que fora combinado tinha que ser respeitado”.
                        A direita conservadora da Vila, inconformada, começou a  maquinar um golpe contra a decisão democraticamente tomada e a qual se comprometera respeitar.   Os vencedores da votação inebriados pela vitória festejada sequer perceberam as sujas manobras dos adversários.     Um fazendeiro da ala mais reacionária, sem que fosse percebido, se foi para Leopoldina  queixar-se ao Bispo, forçando uma decisão episcopal.         Guardião da moral católica e de claras tendências conservadoras,  o Bispo  não foi difícil de ser  convencido pelo emissário.  Demais, as relações do padre com a cúria não era das melhores.    O Bispo decidiu remover o padre Benedictus da Vila do Capivara.      A decisão foi comunicada por meio de carta, ao estilo pastoral, ao  pároco com cópias ao Prefeito  e ao presidente da Câmara.   A moçada que ganhou,mas não levou, sabendo da infeliz notícia,    organizou passeata —com bandeiras vermelhas e cartazes com dizeres candentes – e  percorreu toda a Vila a protestar, mas nada adiantou. O Bispo era a autoridade maior nos assuntos eclesiásticos.    
                    Com profunda tristeza o padre Benedito se preparou para deixar a Vila.  Vendeu o seu belo cavalo baio: arrumou, com a ajuda do Zé Caolha,  seus pertences na Baratinha  e na manhã  seguinte daquela em que recebeu a ordem episcopal, tomou seu veículo para sair do lugar em direção a Cataguazes.   Antes quis dar uma volta pelas ruas para  despedir-se de seus amigos que  eram muitos.  Notou-se até uma certa tristeza nas pessoas que ficaram neutras na disputa  e reprovavam o golpe sujo dos conservadores.    Quando, por fim se dirigiu à estrada, as moças, os rapazes e o pessoal do Mato Dentro  seguiram a baratinha, aplaudindo o padre , até quando ela  se perdeu  na última curva, levantando o pó da estrada.    Muitos chegaram às lágrimas.  
                     O trem misto que ia para Cataguazes tinha horário de  partida da Vila  às  quatro horas da tarde.  Naquele dia partiu da Estação com 20 minutos de atraso. Pouca gente subiu ao comboio.   Duas mulheres pegaram o trem, com suas malas: uma   morena, de meia idade  e uma mocinha  que pareciam mãe e filha.
                         Passado pouco tempo notou-se  a ausência da Sá Clara e da Nilzinha, no Mato Dentro  e na Vila de São Francisco do Capivara.   
                           
                            V. Hugo – Outubro 2003.
 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário