Confidência
(
conto)
-
Olha Josias, eu nunca falei daquele acontecimento para ninguém, nunca. Como envolveu a figura do meu pai, Moisés,
que você bem conheceu e que tinha prestígio aqui na Freguesia de Santa Rita da
Meia-pataca, sempre evitei contar o que aconteceu. Agora que me aproximo do fim -- ora amigo,
já completei 85 anos -- acho que não mais vale a pena conservar este silêncio respeitoso que
mantive por tão longo tempo.
Nem sei se isto valeu a pena, talvez me doesse passar a outros aquilo
que considerava um segredo. De qualquer
forma agora ele me pesa e deste peso quero me livrar, pois tenho pra mim que
não seria bom enterrá-lo definitivamente com a minha morte. De posse dele você fará o que lhe aprouver
depois que eu entregar minha alma a Deus.
- Você há de me
perguntar o porquê do meu silêncio até aqui; eu lhe explico: tive receio de
constranger e fazer sofrer pessoas
ligadas ao fato. Agora me sinto mais livre, pois quase todos morreram e
os que ainda restam vivos foram preservados. Veja o que se passou:
- Meu pai era dono da Fazenda do
Degredo, nesta Freguesia; a propriedade lhe viera por herança dos meus avós.
Ali plantava café, que era a cultura mais lucrativa naquela época. Nasci e cresci em meio aos eitos da plantação. Ali cresceram comigo os meus irmãos mais
novos: o Juca e a Marina, sob o manto de proteção de meu pai e de minha
mãe, dona Carmela. Tínhamos como
horizonte próximo as nossas montanhas em cujas encostas vicejavam os arbustos
do café, com suas folhas verdes, ponteados pelos frutos vermelhos. Na frente da
casa grande, caiada de branco, com cinco janelas de folhas inteiras pintadas de
azul e varanda, a porta se abria para o extenso pátio de secagem em frente. Eu já era um rapaz,
então. Fizera o curso fundamental no
grupo escolar da Freguesia e passei a tomar conta da roça, juntamente com meu
pai.
-- Nunca mais
estudei, amigo Josias. Você se foi,
virou doutor eu fiquei na lavoura. Não
me arrependo. Era o meu destino. Hoje, daqui desse alpendre, contemplo estes
pastos nus, por onde pasta nosso gado, e às vezes sonho com
o cafezal; parece que ainda estou vendo o balanço cadenciado das folhas
verdes dos arbustos enfileirados morro
acima, tocados pela brisa constante que
soprava tangenciando o espelho da água do ribeirão Capivara, lá embaixo.
Meu pai,
Moisés, era homem da roça, mas sensível, criado na Fazenda do Degredo onde
nasceu e morreu, como lhe disse, jamais se embruteceu naquela rude lida. Tinha uma invulgar coragem e forças
físicas, atirando-se às tarefas mais pesadas, da colheita e, parecendo se
deleitar com o rolar dos grãos no grande pátio de secagem. Ele suava comigo e os empregados, sob o sol
e, às vezes, na noite entrada.
Acostumou-nos,
porém, às suas ausência periódicas. Assim, sem aviso e sem que se percebesse
seus preparativos, num belo dia, geralmente pelo outono, após a colheita e o
ensaque dos grãos e de maneira repentina, amanhecia com sua bagagem pronta,
beijava o rosto da minha mãe, afagava a cabeça dos filhos e se encaminhava pela
estrada na direção do Rio Pomba. Partia
para um destino por nós desconhecido.
Na primavera,
quando os frutos começavam a amadurecer vermelhando-se, sem qualquer aviso ele
chegava de volta à Fazenda. Trazia pequenos
presentes para todos e roupas; perfumes e bijuterias para minha mãe que se
enchia de emoção, risos e felicidade.
Meu pai também aparentava estar feliz por regressar. Não dava qualquer explicação para sua
ausência; era uma estranha rotina. Eu não
tinha coragem de me manifestar ou de fazer perguntas. Minha mãe se mantinha
reservada e jamais comentava. A vida
prosseguia. Na minha cabeça eu achava
sempre que cada uma delas seria a sua última viagem. Ele, simplesmente, se
mantinha calado. A sua ausência causava
a nos todos uma certa tristeza; minha mãe fazia tudo para que a gente não
percebesse seu indisfarçável sofrimento. Mulher forte tocava comigo a lides da
roça. A certeza da volta do pai nos consolava.
Era
estranho o procedimento da minha mãe: não lamentava a partida e se alegrava com
a volta.
-
Josias, quando eu completei 30 anos e já estava casado com a Marília, resolvi
que deveria desvendar o mistério das ausências do meu pai. O Maneco, agente da estação da estrada de
ferro, se recusou a dizer-me se lhe vendia bilhetes; negava mesmo com veemência
saber para onde ele se dirigia. Era um direito dele; eu não insistia. Andei indagando daqui e dali e acabei
desistindo.
No fim do verão de 1946, numa tarde calorenta,
lá vinha o Murilo de Barros, pela Rua de Baixo, no centro da Vila, montado no
seu inseparável cavalo baio. Ao me
avistar acenou para que eu parasse; precisava falar comigo, gritou.
–Você,
Josias, conheceu o Murilo: era miudinho de cabelo cor de fogo, filho do antigo
curandeiro da Freguesia, o Seu Ricardo de Barros. Achei estranho abordar-me. Saltou lépido da
cela ao chão e fomos, os dois, a um canto da calçada.
-Precisava mesmo encontrar você; foi
dizendo, aguçando minha curiosidade.
-Olha
rapaz, estou chegando de São Felix, onde fui negociar um gado; uns garrotes
para engorda lá que os campos aqui na Lavra andam secos. Mas, eu quero mesmo é falar-lhe do seu
Moisés.
Do meu pai? – “É, de seu
velho”.
Murilo começou num tom assim meio reservado:
-“
passando pelo centro da Vila de São Felix, a uma certa distância, vi seu pai,
seu Moisés; estava acompanhado de uma senhora e de dois meninos. Achei estranho e evitei que ele me
visse. Perguntei ao Fazendeiro que
ficou lá com meus garrotes se conhecia aquele homem. Foi logo dizendo: seu Moisés é conhecido de
todo mundo aqui em São Felix ,
tem uma fazendola lá para os lados de Paroquena, mas não sai desta Vila, tem
negócios aqui. É um homem de bem, tem
dois filhos com Dona Mariquinha, sua mulher, filha de família tradicional de
São Felix, os Almeida. O homem tem um
costume estranho que as pessoas comentam; ele se ausenta por longos períodos da
sua roça e de seus negócios, sumindo no mundo. Depois, sem mais aquela,
volta. O pessoal já se habituou com
isto. Não estendi o assunto.
-Amigo Josias, você não pode imaginar o que eu senti ali, naquele
instante. O Murilo até ficou preocupado, pois tive uma ligeira tonteira e ele
me amparou. Depois quis me dizer mais
alguma coisa, mas eu não quis ouvir. O
velho estava ausente, àquela altura.
Meu pai chegou, logo após,
numa manhã cinzenta na Fazenda do Degredo; despejou dos alforjes as roupas e os
presentes de costume. Minha mãe, emotiva, deixou uma lágrima escorrer pelo
rosto enquanto se jogava nos braços do velho.
Ele beijou meus irmãos, abraçou-me afetuosamente e foi logo indagando
sobre as plantações e o gado. Não tive coragem de dizer-lhe do que
soubera. Nunca o disse.
As ausências do meu
pai se prolongaram ainda por alguns anos.
-Você agora, Josias, além de mim, é o único a saber disto, pois o
Murilo faleceu e jamais revelou. Minha mãe morreu sem saber, ou se sabia,
jamais falou sobre o assunto. Nunca tive coragem de abordá-la. Meus irmãos não sabem que nós temos mais
dois irmãos em São Felix ,
espero lhes contar um dia.
Meu pai faleceu na Fazenda do Degredo, aos 85 anos.
Um homem e uma mulher, desconhecidos na Vila de Santa Rita da
Meia-pataca, compareceram aos funerais e ao sepultamento de Moisés no velho
cemitério do Mato Dentro, verteram algumas lágrimas e se foram, em silêncio,
sem que se lhes soubesse o destino.
-Amigo Josias,
eu me sinto aliviado por lhe contar o acontecido.
VHC (maio de 2009).
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