sexta-feira, 21 de março de 2014

MAIS UM CONTO (é o algo mais)...



 
                                          No Mercado das Flores.   
                                                       conto
                                   
       (Este é um texto ficcional, qualquer semelhança com fato real será mera coincidência).

                       Era uma sexta-feira e Manoel Torres, àquela hora da manhã de um dia de primavera, em 1969, já se encontrava sentado no ônibus da linha 249, a caminho do trabalho.   Saia de casa sempre pelas sete horas.   Seu emprego no Mercado das Flores era dedicado à Contabilidade dos comerciantes,  à seleção das plantas e rosas para distribuição matinal  e marcação de preços.
                    Manoel ia pensando sobre a sua vidinha de tijucano.  Fizera 50 anos, sem festas, sem emoção.  Recebeu alguns telefonemas de parabéns; de alguém reclamando por festa; mais nada. A vida não lhe fora particularmente propícia para momentos felizes, ia pensando. Também não podia se queixar; nunca passara necessidade.  Filho único, seus pais portugueses, já falecidos, eram pessoas de classe-média e puderam lhe dar escola, educação e encaminhá-lo na vida; se não caminhou mais deveu-se  à sua própria acomodação.   Tinha onde morar, pois eles lhe deixaram o apartamento de dois quartos da Rua dos Araujos, na Tijuca. O que ganhava no Mercado das Flores dava para sobreviver com dignidade. 
                           Os últimos fios de cabelo que manejava para cobrir o alto da cabeça caíram pouco antes do aniversário, sobrando-lhe, apenas, outros poucos ao lado das orelhas e sobre o pescoço.  Agora, além de cinquentão, se sentia um careca. Aquilo lhe dava uma certa tristeza.  Nada lhe doía mais, porém, do que a vida sem emoções, rotineira e, até certo ponto vazia que levava; mas se conformava com isto.  
                           No pequeno escritório  do Mercado onde fazia as contas e controlava seus papéis, mal cabia uma escrivaninha, dois armários e duas cadeiras.  Na verdade lhe sobravam - para quebrar a monotonia - as discussões diárias sobre futebol e assuntos rotineiros do dia-a-dia, nos boxes de venda das flores no entorno do Mercado, que  percorria no desempenho de seu trabalho. Se detinha, mais das vezes,  em frente ao Box do Constantino, um mulato forte que fazia ali o trabalho mais pesado, e  que era mais amigo dele e   residia  também na Tijuca.
                     Manoel fazia uma restrição nas suas discussões:
                      “-jamais falar sobre política”.  Dizia mais: 
                     - “não, não gosto de política porque ela divide as pessoas" e acrescentava com certa ênfase: 
                         -“nesta ditadura militar que a gente vive, é melhor mesmo se manter calado".
                     “-não nasci para ser revolucionário”, quero viver em paz”.

Torres, o nome pelo qual Manoel era mais  conhecido no Mercado, gostava mesmo era de passear por entre as ramagens e flores e se habituara a sorver o perfume que delas emanavam, isso lhe bastava.
Aquele local perfumado tem história  e o contador gostava de lembrá-la.    A praça do Mercado das Flores que, a partir de 1918, leva o nome de poeta,  Olavo Bilac que a amava, nasceu pela demolição do prédio do Tesouro,  existente no local onde funcionava a repartição fiscal do Segundo Império, ligando a antiga Rua dos Latoeiros - hoje Gonçalves Dias - que ali terminava, à Rua Buenos Aires - antiga do Hospício - por um beco estreito, era o Beco do Fisco.  Por muitos anos povo ainda chamava a praça e o mercado  de "o Beco do Fisco”. Por duas vezes o Mercado foi restaurado: no governo Epitácio Pessoa, pelo prefeito Carlos Sampaio e mais recentemente tomou a configuração atual projetada pelo famoso arquiteto Sérgio Bernardes.                     
                     Manoel Torres se casara cedo, aos 23 anos e, prematuramente, ficou só.    A mulher não suportou a convivência sem graça que tinham e se divorciaram. Ele até achou bom; falava, para quem quisesse ouvir, que não tinha mesmo vocação para ficar amarrado a uma mulher.  Sua ex-mulher nem despesas lhe deu, pois em seguida arranjou outro casamento.  “– O defeito é meu”,  ele confessava.
                           Naquela manhã de sexta-feira, com a perspectiva   do Domingo em que iriam jogar no Maracanã o seu  Vasco da Gama, justamente contra o seu maior rival o Flamengo,  Manoel antevia uma tarde menos monótona;  já estava  com o ingresso comprado.
                        Na segunda-feira seguinte, o Constantino estranhou que ao chegar no Mercado, já pelas nove horas carregando sua carrocinha de flores, não encontrou Manoel.  “-Ele não faltaria sem avisar; sem sequer telefonar”.    Resolveu esperar um pouco. Às 10 horas ligou o telefone para a casa do amigo; ninguém atendeu.
 Já era meio-dia, quando decidiu ir procurar  Torres.      Constantino sabia que ele morava sozinho e receou que pudesse ter acontecido alguma coisa grave com ele.    Foi-se para a Tijuca.                                     
                       Subiu ao terceiro andar do velho edifício da Rua dos Araújos, e encontrou a porta do apartamento aberta; notou sinais de arrombamento.  Penetrou devagar e encontrou tudo em seus lugares, apenas, no quarto, a cama estava desarrumada.  Não havia sinais de roubo. Ficou, inicialmente, sem saber o que fazer, depois desceu ao térreo e procurou Seu Miguel, dublê de porteiro e faxineiro que, àquela altura, fazia limpeza nos corredores do prédio.  O homem se mostrou assustado.  No princípio recusou-se a falar.  Depois assediado  foi dizendo, meio trêmulo:

                     – “olha, me pediram pra não falar; “calar o bico”.  Por favor, não diga a ninguém que eu falei, mas levaram o homem encapuzado e algemado; tinha um carro preto parado aí fora. Empurraram Seu Manoel pra dentro e se foram.  Pelo amor de Deus, eu não vi nada!”.

                            Constantino correu à Delegacia Policial da Tijuca e lá não encontrou Manoel. Um investigador de plantão, sendo informado da forma como Torres fora preso e levado, foi logo dizendo que aquilo era coisa do Exército.  “– o homem deve estar na Barão de Mesquita, 425”

                              Naqueles tenebrosos tempos da ditadura militar, havia em todas as pessoas um certo medo de envolvimento com os militares, por isso Constantino resolveu procurar um advogado para tentar  localizar o Torres, e  não se expor .
                         Dito e feito; passados dois dias, o causídico escolhido comunicou  que localizara o Manoel no DOI-CODI, na Rua Barão de Mesquita, 425; fora preso por ato de subversão contra o regime.  Provavelmente seria solto no dia seguinte ao meio-dia, após a devida apuração.      O advogado combinou com Constantino e ambos foram esperar o Manoel, à porta do quartel na hora marcada.  O amigo amargurado não se conformava com o motivo da prisão.   Para ele o contador não estaria metido em subversão, haveria algo errado; logo ele se indagava? .
                        Os militares foram pontuais, ao meio-dia, apareceu um sargento à porta do quartel e confirmou que Manoel estava saindo; seria conduzido para sua residência.  Com efeito, pelo portão lateral apontou, então, uma ambulância; era o veículo que ia  conduzindo o preso à casa.  Foi negado pelo militar, delicadamente, seguir qualquer acompanhante no veículo.  A ambulância partiu; o advogado e Constantino foram acompanhando num táxi.  
                            Na Rua dos Araujos, o Manoel Torres foi retirado da maca, onde se encontrava deitado, levantou-se e foi entregue aos dois que já o esperavam claudicante e  andando com dificuldade.   O militar que conduzia o veículo passou à mão do advogado uma folha de papel onde estava escrito que Manoel fora objeto de um lamentável engano, o homem que procuravam era um seu homônimo; não era ele.  O papel entregue não tinha sequer assinatura, nem timbre do Exército. .
                             Em 5 dias de prisão no DOI-CODI  Torres perdeu 7 quilos e acumulou várias lesões no corpo e na auto estima.   Fora torturado, sem saber por que.   
Constantino levou o amigo para um hospital onde permaneceu internado em recuperação física e mental por mais de vinte dias.  

                              Passado algum tempo - cerca de dois meses - Manoel Torres, já recuperado, desapareceu do emprego e de seu apartamento da Rua dos Araujos e  nunca mais foi visto no seu Mercado das Flores.
                             Soube-se, depois de alguns anos, que ele teria sido assassinado na Guerrilha do Araguaia.   Até hoje não foram localizados os seus restos mortais. 
                                                        
                                                                VHCarmo.
                                                              Março de 2010.
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