No
Mercado das Flores.
conto
(Este é um texto ficcional, qualquer
semelhança com fato real será mera coincidência).
Era uma sexta-feira e
Manoel Torres, àquela hora da manhã de um dia de primavera, em 1969, já se
encontrava sentado no ônibus da linha 249, a caminho do trabalho. Saia de casa sempre pelas sete horas. Seu emprego no Mercado das Flores era
dedicado à Contabilidade dos comerciantes,
à seleção das plantas e rosas para distribuição matinal e marcação de preços.
Manoel ia pensando sobre a sua vidinha de
tijucano. Fizera 50 anos, sem festas,
sem emoção. Recebeu alguns telefonemas
de parabéns; de alguém reclamando por festa; mais nada. A vida não lhe fora
particularmente propícia para momentos felizes, ia pensando. Também não podia
se queixar; nunca passara necessidade.
Filho único, seus pais portugueses, já falecidos, eram pessoas de
classe-média e puderam lhe dar escola, educação e encaminhá-lo na vida; se não
caminhou mais deveu-se à sua própria
acomodação. Tinha onde morar, pois eles
lhe deixaram o apartamento de dois quartos da Rua dos Araujos, na Tijuca. O que
ganhava no Mercado das Flores dava para sobreviver com dignidade.
Os últimos fios de
cabelo que manejava para cobrir o alto da cabeça caíram pouco antes do
aniversário, sobrando-lhe, apenas, outros poucos ao lado das orelhas e sobre o
pescoço. Agora, além de cinquentão, se
sentia um careca. Aquilo lhe dava uma certa tristeza. Nada lhe doía mais, porém, do que a vida sem
emoções, rotineira e, até certo ponto vazia que levava; mas se conformava com
isto.
No pequeno escritório do Mercado onde
fazia as contas e controlava seus papéis, mal cabia uma escrivaninha, dois
armários e duas cadeiras. Na verdade lhe
sobravam - para quebrar a monotonia - as discussões diárias sobre futebol e assuntos
rotineiros do dia-a-dia, nos boxes de venda das flores no entorno do Mercado,
que percorria no desempenho de seu
trabalho. Se detinha, mais das vezes, em
frente ao Box do Constantino, um mulato forte que fazia ali o trabalho mais
pesado, e que era mais amigo dele e residia
também na Tijuca.
Manoel fazia uma restrição
nas suas discussões:
“-jamais falar sobre política”. Dizia mais:
“-jamais falar sobre política”. Dizia mais:
- “não, não gosto de
política porque ela divide as pessoas" e acrescentava com certa ênfase:
-“nesta ditadura militar que a gente vive, é melhor mesmo se manter calado".
-“nesta ditadura militar que a gente vive, é melhor mesmo se manter calado".
“-não nasci para ser
revolucionário”, quero viver em paz”.
Torres,
o nome pelo qual Manoel era mais conhecido no Mercado, gostava mesmo era de passear por
entre as ramagens e flores e se habituara a sorver o perfume que delas
emanavam, isso lhe bastava.
Aquele
local perfumado tem história e o
contador gostava de lembrá-la. A praça
do Mercado das Flores que, a partir de 1918, leva o nome de poeta, Olavo
Bilac que a amava, nasceu pela demolição do prédio do Tesouro, existente no local onde funcionava a repartição fiscal do Segundo Império, ligando a antiga Rua dos Latoeiros - hoje
Gonçalves Dias - que ali terminava, à Rua Buenos Aires - antiga do Hospício - por um beco estreito, era o Beco do Fisco.
Por muitos anos povo ainda chamava a praça e o mercado de "o Beco do Fisco”. Por duas vezes o
Mercado foi restaurado: no governo Epitácio Pessoa, pelo prefeito Carlos
Sampaio e mais recentemente tomou a configuração atual projetada pelo famoso arquiteto
Sérgio Bernardes.
Manoel Torres se casara
cedo, aos 23 anos e, prematuramente, ficou só. A mulher não suportou a convivência sem
graça que tinham e se divorciaram. Ele até achou bom; falava, para quem quisesse
ouvir, que não tinha mesmo vocação para ficar amarrado a uma mulher. Sua ex-mulher nem despesas lhe deu, pois em
seguida arranjou outro casamento. “– O
defeito é meu”, ele confessava.
Naquela manhã de
sexta-feira, com a perspectiva do
Domingo em que iriam jogar no Maracanã o seu
Vasco da Gama, justamente contra o seu maior rival o Flamengo, Manoel antevia uma tarde menos monótona; já estava
com o ingresso comprado.
Na segunda-feira
seguinte, o Constantino estranhou que ao chegar no Mercado, já pelas nove horas
carregando sua carrocinha de flores, não encontrou Manoel. “-Ele não faltaria sem avisar; sem sequer
telefonar”. Resolveu esperar um pouco.
Às 10 horas ligou o telefone para a casa do amigo; ninguém atendeu.
Já era meio-dia, quando decidiu ir
procurar Torres. Constantino sabia que ele morava sozinho
e receou que pudesse ter acontecido alguma coisa grave com ele. Foi-se para a Tijuca.
Subiu ao terceiro andar
do velho edifício da Rua dos Araújos, e encontrou a porta do apartamento
aberta; notou sinais de arrombamento.
Penetrou devagar e encontrou tudo em seus lugares, apenas, no quarto, a
cama estava desarrumada. Não havia
sinais de roubo. Ficou, inicialmente, sem saber o que fazer, depois desceu ao
térreo e procurou Seu Miguel, dublê de porteiro e faxineiro que, àquela altura,
fazia limpeza nos corredores do prédio.
O homem se mostrou assustado. No
princípio recusou-se a falar. Depois
assediado foi dizendo, meio trêmulo:
– “olha, me pediram pra
não falar; “calar o bico”. Por favor,
não diga a ninguém que eu falei, mas levaram o homem encapuzado e algemado;
tinha um carro preto parado aí fora. Empurraram Seu Manoel pra dentro e se
foram. Pelo amor de Deus, eu não vi
nada!”.
Constantino correu
à Delegacia Policial da Tijuca e lá não encontrou Manoel. Um investigador de
plantão, sendo informado da forma como Torres fora preso e levado, foi logo
dizendo que aquilo era coisa do Exército.
“– o homem deve estar na Barão de Mesquita, 425” .
Naqueles
tenebrosos tempos da ditadura militar, havia em todas as pessoas um certo medo
de envolvimento com os militares, por isso Constantino resolveu procurar um
advogado para tentar localizar o Torres,
e não se expor .
Dito e feito; passados
dois dias, o causídico escolhido comunicou
que localizara o Manoel no DOI-CODI, na Rua Barão de Mesquita, 425; fora
preso por ato de subversão contra o regime.
Provavelmente seria solto no dia seguinte ao meio-dia, após a devida
apuração. O advogado combinou com
Constantino e ambos foram esperar o Manoel, à porta do quartel na hora
marcada. O amigo amargurado não se conformava com o
motivo da prisão. Para ele o contador
não estaria metido em subversão, haveria algo errado; logo ele se indagava? .
Os militares foram
pontuais, ao meio-dia, apareceu um sargento à porta do quartel e confirmou que Manoel estava
saindo; seria conduzido para sua residência. Com efeito, pelo portão lateral apontou, então, uma ambulância; era o veículo que
ia conduzindo o preso à casa. Foi negado
pelo militar, delicadamente, seguir qualquer acompanhante no veículo. A ambulância partiu; o advogado e Constantino
foram acompanhando num táxi.
Na Rua dos Araujos,
o Manoel Torres foi retirado da maca, onde se encontrava deitado, levantou-se e foi entregue aos dois que já o esperavam claudicante e andando com dificuldade. O militar que
conduzia o veículo passou à mão do advogado uma folha de papel onde estava
escrito que Manoel fora objeto de um lamentável engano, o homem que procuravam
era um seu homônimo; não era ele. O
papel entregue não tinha sequer assinatura, nem timbre do Exército. .
Em 5 dias de prisão no DOI-CODI Torres perdeu 7
quilos e acumulou várias lesões no corpo e na auto estima. Fora torturado, sem saber por que.
Constantino levou o amigo para um hospital
onde permaneceu internado em recuperação física e mental por mais de vinte
dias.
Passado algum
tempo - cerca de dois meses - Manoel Torres, já recuperado, desapareceu do
emprego e de seu apartamento da Rua dos Araujos e nunca mais foi visto no seu Mercado das
Flores.
Soube-se, depois de alguns anos, que ele
teria sido assassinado na Guerrilha do Araguaia. Até hoje não foram localizados os seus restos
mortais.
VHCarmo.
Março de 2010.
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