quinta-feira, 1 de março de 2012

Algo mais é um conto...

Do livro de contos "Complexo do Alemão & outros contos", deste blogueiro.

                                             A vedete.
                                                   (conto)


 A Praça Tiradentes era o centro do lazer noturno do Rio de Janeiro naqueles idos dos anos 40 do século passado e eu, vindo do interior profundo de Minas Gerais, era espectador deslumbrado daquelas noites de teatro, de cabarés e da vida que fluíam, assim meio inocentes, aos meus desejos e sonhos de jovem. No Teatro Carlos Gomes encenavam-se as Revistas de Walter Costa, Chianca de Garcia e dos chamados reis da noite. Os maiôs cheios de brilhos das lantejoulas de arminhos, prateadas, douradas, azuis, vermelhas, desenhando os corpos graciosos e sensuais das vedetes sob os holofotes de luzes cambiantes; pernas e coxas desenhadas em contornos sensuais. As piruetas e danças com os bailarinos e palhaços; era tudo muito festivo. Desejo despertado e ilusões desfiladas nos sonhos das noites de fins de semana. Ali Dalila Escarlete desfilava e, entre todas, ela é quem merecia a minha admiração especial e alimentava os meus desejos não só românticos, mas sensuais, devo confessar. O acaso fez aproximar-me dela. O acaso, do qual já nem me lembro, quando e como se deu. O importante, agora que escrevo estas linhas, é lembrar que um dia nos encontramos, quando ela saía dos camarins pelos fundos do velho teatro. Era talvez mais bela, aos meus sentidos, sem a maquiagem, as luzes e o brilho do palco. Um sorriso nervoso, um murmúrio de palavras desencontradas e a sua admiração da minha ousadia por aproximar-me. Os olhos de Dalila Escarlete, de um profundo negror, tinham um brilho que iluminava as suas feições morenas e os seus cabelos castanhos caiam ligeiramente sobre os ombros, esvoaçando. O sorriso dela era, a um tempo, ingênuo e maldoso; o seu corpo de vedete buscava, e quase atingia, a perfeição. Eu não perdia um espetáculo sequer em que Dalila figurava, dançando, em requebros sensuais, as marchas e sambas excitantes das Revistas da Praça Tiradentes. Terminados os espetáculos, lá ia eu esperá-la ao sair dos camarins. Era um tonto de paixão juvenil que ela esnobava com aquele sorriso cheio de negaças e fingidas esperanças.
Durante muito tempo eu abordava Dalila ao fim dos espetáculos, mas a aproximação, desejada, não se deu. Ela, mulher inteira e madura em seus 22 anos e eu um jovem ingênuo aos 18; não tinha mesmo chance.
Depois, como não se apresentasse mais nos espetáculos do Carlos Gomes, perdi Escarlete de vista, embora ela permanecesse na minha mente e nos meus desejos. Procurei a vedete por onde pensei poder encontrá-la; em outros palcos e na noite de Copacabana que então começava a abrir-se à boemia carioca; e nada. Soube, depois, por um dos porteiros do Teatro, que a musa tinha ido exibir-se nos palcos de São Paulo e se casado com um homem rico. A paixão frustrada que se instalara em mim se desvaneceu aos poucos.

Nada como o tempo para apagar paixões e a minha, inexoravelmente, passou e a lembrança da Dalila Escarlete se esfumou.
O tempo, do qual ora falo, se contava, então, em mais de trinta anos. A minha juventude já se fora. A lida diária e a luta pela vida enrugaram-me o rosto e pratearam os meus poucos cabelos. Eu passava, então, quase diariamente, pelo grande saguão do Palácio da Educação, me dirigindo ao trabalho na Cinelândia. Aquele edifício, erguido nos moldes da arte moderna, por Le Corbisier assessorado pelo imortal Oscar Niemeyer, fora pioneiro daquela corrente arquitetônica na cidade. Os ladrilhos de Portinari, cobrindo as paredes em doces curvas, enchiam-me os olhos e a mente e eu fazia questão de por ali passar para me revitalizar com aquela beleza e a vista dos jardins, em meandros, de Burle Marx, redesenhando as fontes e passarelas de pedras portuguesas.
Numa manhã de primavera dessas em que a luminosidade da cidade do Rio se mostra cristalina, vi, sentada em um dos bancos do jardim do Palácio, uma mulher já velha. Aproximei-me e, do recôndito de minha cansada memória, reconheci aquela figura: era Dalila Escarlete. Fixou em mim aqueles mesmos olhos escuros, mas já sem o brilho de outrora. Seus cabelos castanhos empastados de alguma brilhantina vagabunda já não mais esvoaçavam. O seu semblante, cravado de uma profunda tristeza, denotava a alienação em que vivia. Olhou-me, apertando os olhos como que tentando estimular a memória, depois sorriu o riso dos dementes. Seu corpo descarnado, vestido de trapos de estampados colorido, já não tendia à perfeição das noites do teatro. As belas pernas que rodopiavam nos palcos da minha juventude estriavam-se de varizes azuis. Foi muito triste aquela visão da antiga diva. Ao lado, no banco em que se sentava, algum dinheiro se espalhava, lançado por transeuntes; eram moedas e notas que pareciam não interessar a ela. Dalila continuava a apertar os olhos negros a mirar-me e a sorrir o riso dos alienados. Não me reconheceu e nem podia reconhecer, pois, além do tempo, fugira-lhe a mente. Confesso aos que me lêem que uma profunda tristeza me invadiu por inteiro. Não sabia o que fazer. Pensei juntar, ao dinheiro espalhado, mais algum, porém não o fiz. Instintivamente sentei-me ao lado de Dalila Escarlete. Foi então que notei, pendente de seu pescoço por um fio, sobre o colo murcho, havia um pequeno envelope plástico transparente e ali se podia ler:

- Quem encontrar esta senhora perdida, comunique, por favor, ao Retiro dos Artistas.

Saí caminhando, meio tonto, pela Rua Araújo Porto Alegre e no primeiro telefone público, que encontrei, liguei para Retiro cujo telefone também constava do plástico.
Fiquei ali por longo tempo ao lado da Dalila até que chegou a ambulância que a levaria. Ainda sorrindo, com aquele riso triste e alienado, foi conduzida delicadamente ao veículo por duas enfermeiras, vestidas de branco imaculado; o dinheiro se espalhou sobre as pedras portuguesas.
Antes de entrar na ambulância, Dalila Escarlete virou-se em minha direção, apertando os olhos negros desbotados, sorriu, como que se despedindo.
VHCarmo.

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