domingo, 29 de janeiro de 2012

Os ciganos do Capivara...

         Este modesto escriba nasceu em Palma (MG), pequena vila fronteriça do Estado do Rio, lugar de muitas e histórias e violência política no passado. É um muncípio e comarca antigos que foram perdendo, aos poucos, os seus distritos, que ora se reduzem a três.  A cidade fica num belíssimo vale, cujas montanhas adjacentes ainda ostetam as corôas da extinta mata atlântica. Lugar bucólico onde dois riberões se crusam, formando o Capivara que vai desaguar no Rio Pomba, ainda no município, no distrito de Cisneiros. Foi lugar de plantação do Café, até o início do século XX, que era enviado ao porto do Rio de Janeiro, pela estrada de ferro extinta. Brejos auríferos ensaiaram a mineração que não foi longe, produzindo poucos ricos e muita desilusão. Hoje o município continua pobre mas querido por seus filhos que lhe dão vida.   Ir a Palma, ver aquele belo vale, visitar seus antepassados que jazem no campo santo do Mato Dentro e  sentir as suas montanhas por perto faz parte vital da vida desse blogueiro.      Este conto que aí vai, pretende deixar um testemunho da presença periódica dos ciganos na antiga Vila do Capivara. Olhem só:

                                             
                                       
                                   Os ciganos do Capivara.
                                                                Conto

A pequena cidade de Palma em Minas Gerais que fica bem junto à divisa do Estado do Rio, era ainda o Curato de Santa Rita da Meia-pataca da Diocese de Leopoldina no início do século XIX quando, nas margens do Ribeirão Capivara, já acampavam periodicamente os ciganos. Mal entrada a primavera eles chegavam.
Os meninos, e até mesmo os adultos do povoado, ao despontar as primeiras flores silvestres nas bordas do córrego e quando as folhas e galhos das árvores se punham a balançar ao vento agradável e morno que espantava o inverno, já se mostravam ansiosos esperando a chegada dos ciganos.
A expectativa dos habitantes da Vila era, assim, um misto de ansiedade e alegria que iria causar o colorido das vestes dos nômades, a difusão dos sons nos falatórios das mulheres, da algazarra dos meninos ciganos e a música de seus instrumentos rústicos. Com eles chegava também a preocupação sobre estórias e mitos correntes de males – nunca bem definidos - que eles ciganos poderiam trazer, embora nunca se tivessem notícias que os trouxera.
Os nômades vinham como numa uma procissão: os homens de calças largas de pano fino, blusas de seda com as cabeças envoltas em lenços vermelhos, dentes de ouro; as mulheres com suas saias e cabeleira longas e coloridas, as crianças com suas vestes multicores. Os carroções com as tralhas, os cavalos enfeitados com montarias de couro pintadas e encravadas de prata, puxados pelos cabrestos levantavam a poeira. Armavam suas tendas de pano grosso cor de barro e instalavam seus fogões, utensílios e cômodos íntimos, plantando uma pequena comunidade nas margens do Ribeirão Capivara que corria ali com suas águas limpas e cristalinas. Tudo sobre a sempre renovada curiosidade, meio distante, daquela gente da Vila.
Os ciganos traziam cavalos para vender e, exímios latoeiros, expunham à venda seus tachos, panelas, canecas e canecões que soldavam ali mesmo em fornos improvisados. Plantada a míni vila, se atiravam ao comércio: os homens a negociar os animais e os utensílios e as mulheres, acompanhadas dos filhos pequenos, a abordar as pessoas pelas ruas da Vila para lhes ler nas mãos a sorte e lhes prometer sempre a felicidade e, porém muitas vezes, as assustando sob velada ameaça de algum mal indefinido, se recusada a leitura e o seu ganho. Aos homens ciganos atribuíam-se maldades, traições e trapaceio nas transações. Propagava-se que, tão hábeis a enganar as pessoas, conseguiriam vender cavalos cegos aos mais incautos. O mais grave: veiculava-se até que eles seriam capazes de “roubar crianças”. Por isso as crianças da Vila tinham medo dos ciganos. Os meninos desciam até perto das tendas no Capivara e, ali um tanto distantes, ficavam a observar a movimentação do bando e, quando descobertos, fugiam em alarido.
Sob os lampiões de óleo a alumiar as tendas e ao redor da fogueira noturna no terreiro os ciganos dançavam ao som das sanfonas e entoavam remotas canções langorosas e ritmadas pelos chocalhos.
Aqueles nômades, segundo se acreditava, tinham origem na Europa medieval, provavelmente do leste magiar e teriam vindo ao Brasil e àquela região, através da Espanha. Falavam português com sotaque característico da língua de Servantes.
Mal finda a primavera e principiando o verão, os nômades partiam, seguindo a sua sina. Nunca se soube, ao certo, seu próximo pouso. Sumiam pela estrada que vai a direção ao Rio Pomba, no distrito de Cisneiros, naquela mesma procissão, arrastando as suas tralhas. Antes de sair limpavam o terreno que ocuparam e deixavam intactas as flores e as plantas silvestres das margens do Capivara.
Numa daquelas visitas dos nômades, dizia-se, que aconteceu um fato cujos detalhes, até hoje, correm de “boca em boca” na cidade de Palma. Acontecimento, transmitido por antigos habitantes, a sua veracidade não se atesta, mas há, sem dúvida, muita verossimilhança naquilo que se conta e permanece.
No final das ruas do povoado, num pequeno sítio no início do caminho que vai para a divisa da Vila com o Estado do Rio, veio morar, então, uma modesta família de agricultores. Nunca se soube exatamente de onde viera.  Eram os Mitri Occa, gente que passou a mourejar na roça desde o início do povoamento da Vila  Capivara, nome que o Curato de Santa Rita da Meia-pataca passou a ter quando o povoado foi elevado a Vila em 1860 e consagrado ao padroeiro São Francisco de Assis.
A família Mitri Occa, além dos pais, seu Epifânio e Dona Isabel, tinha três filhos; o mais velho era Juan Occa, que estava então com quinze anos e já trabalhava no eito e se alfabetizara na sala de visitas da Dona Nenzinha, que era a única escola da pequena Vila do Capivara.
Daí que, chegando então uma nova primavera e com ela os ciganos se instalando ali bem perto de onde os Occa mexiam com a terra, o jovem Juan os via com natural curiosidade. Aos poucos o rapaz foi se chegando ao bando; estranhamente não tinha receios de se aproximar. Ia de casa às tendas e voltava, a princípio por pouco tempo, tempo que se foi alongando. Num mesmo dia, indo pela manhã, chegou à casa, de volta, já era noite, preocupando os pais.
O verão se aproximava e era a hora de se irem os ciganos, como de costume.
No dia da partida, o rapaz falou aos pais que iria se despedir dos ciganos que desarmavam as tendas. Juan não voltou, foi-se com o bando. Foi visto, por várias pessoas ao atravessar o centro da Vila, na procissão dos ciganos.
Os velhos pais de Juan choraram a sua ausência, mas estranhamente não moveram um palha sequer para reclamá-lo. Nem a insistência do Delegado de Polícia os fez mover.
Passado alguns anos e, chegando uma nova primavera, aquele bando de ciganos voltou. Montou seu acampamento no local costumeiro nas margens floridas do Capivara.
Epifânio e Isabel foram caminhando até as tendas. Em meio ao tumulto da chegada do bando, um jovem cigano com o característico lenço vermelho envolvendo a cabeça, a blusa de seda e as calças largas, correu ao seus braços: era o filho.
Os pais do cigano Juan misturavam, ali naquele terno abraço, e num mesmo pranto, a alegria de reencontrar o filho e a remota saudade de sua origem nômade perdida no tempo.
VHCarmo.

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