quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Algo mais é um conto...

               Este conto está no livro "Complexo do Alemão & Outros contos" deste humilde blogueiro. Vai aí para amenizar o entrevero das notícias e o martírio das enchentes. É o algo mais ...  


                                                 Loucura


                                                     (conto)

-Deixa disso Cara, esta de ficar maluco não está com nada.

-Tô falando sério, meu camarada. É a única forma de ser feliz. Sei que não é fácil ficar maluco. Mas rapá, eu vou conseguir.

O Zé Argolo que sempre fora um sujeito sério e trabalhador, compenetrado até demais para o meu gosto, andava cismando que queria ficar louco. Explicava: perseguira a vida toda aquilo que se convencionou chamar de “felicidade”, mas não teve sorte. Quando menino ia jogar bola na várzea, na Vila onde nascera, e quebrou uma perna. Passou dois meses engessado. Os companheiros diziam que “era bem feito”, pois ele não dava praquilo. “Futebol é pra quem sabe Zé!”.
Adolescente, todo mundo arranjava uma namoradinha, e ele não. Não se achava feio. E de fato não era. Não compreendia o porquê. Até o Adãozinho, caolha e manco e, por ser mulato escuro, sofria preconceito, andava namorando a Josélia que era até bem bonitinha. Acabou se casando com ela. Ele, Zé Argolo, terminou por ficar solteirão. Disto até que não se queixava tanto, pois muitos amigos dele, daquela época, se casaram e se separaram e lhe confessavam que, às vezes, tinham vontade de esganar a mulher. Sentia, sim, muito a falta de um filho. Chegou a tentar adotar um. Foi preterido duas vezes mesmo considerando que pretendia adotar um neguinho. Ele era solteiro e não conseguiu, desistiu.

-Mas Zé, você pensa que pra ficar maluco é só querer ?

-Não, meirmão, mas vou enfrentar essa parada. Olha que tem um cara lá no Vidiga, que o irmão dele era do tráfico e sumiu. O bicho ficou revoltado, era seu único irmão e companheiro; pai e mãe não tinha. Gritou aos quatro cantos que ia ficar maluco e ficou. Ontem mesmo eu vi o Luquinha lá no Arpoador, com a moçada do Cantagalo, – Lucas que a gente chamava Luquinha – andava e ia gritando coisas sem nexo, abanando uma camisa vermelha rota sobre a cabeça. Ia desfilando no calçadão; olhar vazio, com aquela cara meio iluminada: -“Ta lá -- apontando pro Vidigal -- o irmãozinho Tião! ele é danado, é do tráfico e não morre”.
- Você, meu chapa, precisava ver a cara de felicidade do Lucas! Não encarava ninguém, falava mirando lá pro Vidigal e bem lá pra dentro do mar. Pra falar a verdade, meirmão, eu acho até que vai ser fácil pra mim. Foi fácil pro Luquinha. É só eu me concentrar nesta vida merda que eu levo e nas porradas que tomo. Juro que eu tenho mais razões do que ele, pois a minha parada foi pior. Perdi em dois meses meu pai, que caiu duro num enfarto e minha mãe que vinha roendo um câncer de mama; Zizinho o caçula lá de casa era avião e teve vida curta na mão dos tiras. Fiquei sozinho no mundo, meirmãozinho; solito mesmo, pois nem amigos tenho mais; a maior parte caiu no tráfico, vida breve, e outros sumiram do Vidiga pra num morrer".

Eu até que admiti que o Zé pudesse largar tudo, até seu emprego no boteco, desconcentrar-se, mas maluco de vez; era demais. Não via como. Ele morava no Vidigal bem ali onde o Santo Papa deixou o anel, fazendo aquela demagogia para a pobreza. A Capela ainda está lá e o anel anda bem guardado por alguma autoridade, tão bem que nunca mais foi visto pela mulambada do morro.

Passei algum tempo sem ver o Zé. Já tinha até esquecido daquela estória da maluquice. Numa das minhas caminhadas matinais, em que eu subo pelo mirante do Leblon até o local onde fica o Hotel Sheraton, ali bem perto do Vidigal, gosto de caminhar mirando o mar a rebentar nas pedras, espumando. Foi numa destas que avistei um vulto estranho; vinha ao meu encontro. Barba grande a cair sobre o peito; cabelo longo esparramado pelos ombros, vestindo uma túnica branca; pés descalços. Aproximando, reconheci o Zé Argolo. Ele me olhou com um jeito distante.

- “E aí Zé ?’

Ele tornou a me olhar com aqueles olhos profundos, parecendo então me reconhecer.

- Oh meirmão, deixei aquela mania de ficar maluco; agora sou da Igreja Evangélica do Fim do Mundo. Faço a minha pregação.

- O que é que você prega Zé Argolo ?

- O Juízo Final. Tá vendo essa gente aí do morro ? – e apontava pro Vidigial - se não se converter vai tudo pro inferno. Vai arder nas chamas.

Sinceramente não posso afirmar que o Zé Argolo ficou maluco, mas me restaram algumas dúvidas.

VHCarmo. .

Um comentário:

  1. Que pena que o Zé Argolo não ficou maluco,pois a loucura o teria liberado para sonhar por um mundo melhor.Angelica,que ainda cre.

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