quinta-feira, 3 de setembro de 2015

EDEMILSON - O Negão e CAMILA (uma lição na ficção).



Este conto, que aí vai, é uma ficção, ligada no entanto, à uma realidade de nosso tempo e mostra o caminho das Camilas que, por força de seu exemplo e programas de integração dos negros, é capaz de remover preconceitos e apontar para  um país mais justo e igualitário.
                          
                            EDEMILSON –  o Negão.

                                   ( Conto) 

Edemilson, seu nome de paraibano de Campina Grande, era o chamado Negão. Vigia de uma fabriqueta em Madureira, morava na Comunidade do Alemão, antiga favela da Vila Cruzeiro. Ao nome que teimava esconder, para dizer-se Milton, era mais conhecido como Negão mesmo. Era feio. Não é que todo negro grande e de cara amassada, nariz achatado seja feio, ele não fora privilegiado pela natureza, pois além do mais tinha olhos embaçados, nem negros nem cinzas, com seus brancos avermelhados, beiços caídos e dentes enormes.

Essa coisa de ser belo e feio, de fato, é relativa. Na nossa cultura mestiça ainda é a tipologia branca que se considera bonita. Sublima-se a beleza loira e os olhos claros. A beleza negra se confunde, mais das vezes, com a sensualidade da raça.

 O Negão era feio e normal; a feiura nele não guiava seu caráter. Na fabriqueta de Madureira vagava pela noite e tinha no negrume das madrugadas apenas o Fidélis, o outro vigia, pois eram dois, sendo que Fidélis era branco, melhor dizendo na linguagem popular, era moreno. Se davam bem e se cruzavam por aquelas madrugadas trocando resmungos e saiam juntos pela manhã quando se viam à luz do sol.  Pouco sabiam da vida, um do outro.

 Com a família o Negão tinha um singular cuidado, seu pequeno salário, retirado um quanto medido para seus gastos pessoais, era entregue à mulher. Casara-se ainda jovem com Zefa, paraibana como ele. A mulher, aos 40 anos, ainda ostentava um certo  frescor juvenil e não direi que era uma ‘miss’, não era.  Mas era uma mulata clara bem bonita, com um porte nobre, olhos castanhos insinuantes. Muita gente se admirava que o Negão tenha conquistado a Zefa.   Um lugar comum, mas que o narrador não pode deixar de dizer, eles se amavam e eram solidários.  Zefa era um exemplo de dedicação ao Negão, ajudando-o no sustento da família como diarista de faxina em duas casas da Zona Sul, sobrando tempo para cuidar do seu modesto barraco de alvenaria.

O Negão, além da Zefa, tinha a Camila, a filha a quem ambos dedicavam uma afeição não só maternal e paternal, era mais do que isto, ambicionavam para ela uma vida melhor do que levavam. A menina era dócil e estudiosa. Já que se falou em beleza diga-se que puxou mais à mãe cuja semelhança física todos proclamavam.  Interessada, logo que completou o ensino médio na Escola Chile, no Complexo do Alemão, lançou-se aos livros a preparar-se para os exames do Enem. A mãe comprava e trazia os livros e ela estudava até pelas madrugadas.

Nos exames, no Enem, apesar da grande concorrência, Camila somou pontos para ingresso na Escola Federal de Medicina, ser médica era seu sonho pelo qual lutou.

Quando este narrador refere esses fatos, Camila já concluíra o curso e passou à sua Residência Clínica. Uma particularidade da moça o leitor deve saber: ela gostava de cantar e tocava sofrivelmente o violão. Nas horas vagas se divertia com os colegas sobre os quais foi adquirindo um natural liderança, sem afetação, na vida escolar.  Dera-lhe a natureza o dom da comunicação. Discursava bem o que facilitava a sua natural liderança. Camila era isto e foi escolhida para oradora da turma, quase que por unanimidade.

Estava marcada a data da consagração da festa de formatura; era para um sábado, de dezembro de 2013.

O Negão e a Zefa já se haviam preparado para festa, com ajuda da Camila; vestido novinho da Zefa  e o Negão de calça engomada e. camisa com  colarinho e gravata. A mulher e a filha até acharam o Negão legal; a feiura dera lugar a um estado de felicidade muito próximo da beleza.  

Camila subiu ao palco do Teatro, aplaudida pelos colegas e pela plateia. Vestido de azul claro cingindo-lhe o corpo elegante, o rosto moreno escuro, iluminado pelos olhos da mãe e uma expressão séria natural do pai.

Tomou a palavra:   - “ Meus pais estão ali na fila da frente; pela primeira vez ocupam um lugar tão destacado.  Os tempos são  outros.   Eu mesma, sua filha, me torno singular, pois, normalmente estaria nesta tribuna um herdeiro ou herdeira de  outros pais, de outra origem.  Quebramos um tabu.  A quebra deste tabu custou a luta do nosso povo.   Aos filhos dos negros destinavam-se quase exclusivamente lugares subalternos na escala social;  nos empregos mal remunerados; na exclusão do convívio social e sobretudo na vedação  à carreira universitária.  Eu sou uma exceção que se está consolidando; ou seja,  meus irmãos negros, como eu, estão chegando á Universidade é algo alvissareiro.     Assusta-me, porém, um movimento contrário,  uma pregação regressista que se espalha através de uma mídia conservadora, detentora de invulgar poder que substitui, perigosamente, a oposição legal e constitucional.

“Mas venho dizer a todos: colegas formandos, professores e pais aqui presentes que a profissão que abracei me proporciona a aproximação não só dos negros, mas dos pobres do meu país.  Desta tribuna faço publico que – com o sacrifício da separação do meu Negão e da minha Zefa, - estarei nos próximos dias indo para um município longínquo do Nordeste para filiar-me ao Mais Médicos”.

A plateia aplaudiu de pé.  O Negão e a Zefa - na primeira fila - se abraçaram debulhados em lágrimas e sua Camila continuou o discurso de Oradora da  Turma de Medicina de 2014.

Ao fim, Camila, com os colegas médicos e, empunhando o seu violão, foram cantar sua alegria no bar da praça em frente.

                 Rio,  Fevereiro de 2015.

                                VHCarmo.

 






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