-E o meu afilhado ?
O Comprido estava sempre lá. O meu afilhado já não aparecia fazia tempo. A mulher, que o Roberto apontava sempre como sua companheira, às vezes aparecia, paílda e esquálida. Eu relutava em perguntar-lhes. Intimidade com mendigo é um negócio difícil. Não por eles; por nós mesmos. Eles que me dissessem o que havia com o Roberto quem, afinal, assumira comigo uma certa simpatia recíproca, nomeando-me seu padrinho. Todos ali sabiam.
A mulherzinha mulata, olho de coruja, que faz intermináveis abdominais e parece ter coluna de seda, estava lá, também, todo o dia ao cair da tarde, sempre no mesmo lugar, sentada sobre a grade do buraco do Metrô. Já lhes contei que, estranhamente, ela ora pede, ora recusa esmola. Só não deixa de me olhar com aqueles olhos puxado pros lados e embaçados. Ela também não me disse nada.
Criei, em mim, uma espécie de ansiedade que me tornava imperativo perguntar pelo meu afilhado, mas me faltava coragem.
A última vez que eu o vira ele estava semimorto, ferido no sobrolho; a boca dilacerada, espumando de cachaça. Não teve ânimo sequer de esboçar o habitual sorriso triste. A catinga emanada do seu corpo escuro tornara-se mais insuportável, como se isto fosse possível.
- “V. está bem ? Perguntei-lhe então.
-"Que nada, meu padrinho, tô fudido. Levei um tombo, foi a cachaça que me empurrou. Fiquei uns dez dias internado no hospital do Campo de Santana". Ainda tentou sorrir...
- "E aí, tá melhor agora, cara?
“ Sei lá, padrinho; já não tenho forças pra pedir esmola, nem apetite pra comer”.
"-Te cuida Roberto!"; falei e desci rápido as escadarias do Metrô como para me livrar de um triste pressentimento.
Afinal, num dia desses eu criei coragem. O Comprido estendia a mão à beira da calçada, junto da estátua do centenário da Independência. O cheiro de mijo, subia-lhe pelo corpo magro e penetrava pelo meu nariz inflado, mesmo assim persisti. Saquei uma moeda e, enquanto a colocava na mão dele, fiz a pergunta que havia tanto tempo estava engasgada:
-“E o Roberto, Comprido?.
"O seu afilhado?
- “É.. é.
“Ele tava bebão e tomou um tombo na rua, ali perto da Biblioteca; bateu com a cabeça no meio-fio e morreu, dois dias depois, no Souza Aguiar. Foi recolhido e jogado na vala comum no emitério do Caju; este é o destino da gente que vive nas ruas”. O Comprido falava e ria, sem a menor compulsão.
“Já até fui até lá botar uma vela no meio das outras na intenção dele”.
A morte do companheiro do lupem e da miséria parecia ser, para ele, coisa corriqueira; teanto que não lhe vi nos olhos, nem na cara macerada qualquer sinal de emoção. Virou-se:
- “É meu companheiro, seu afilhado se foi!”.
Eu que sou, confesso, movido por emoção e não resisto às lágriamas, não pude me conter e o Comprido notou. Virou-se pra mim:
-“Meu amigo, não chore por ele, pode atrapalhar a subida da sua alma pro céu”. E tornou a rir seu riso sem dentes.
VHCarmo - (outubro de 2007).
Este pequeno conto ( texto ficcional) complementa um anterior com o título "Meu afilhado", do meu livro de contos "Complexo do Alemão & outros contos".
25.01.2011.
VHCarmo.
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