terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Onde foi parar meu afilhado? (conto).

                                                   A gente da rua.
                                                       -E o meu afilhado ?

                                O Comprido estava sempre lá. O meu afilhado já não aparecia fazia tempo. A mulher, que o Roberto apontava sempre como sua companheira, às vezes aparecia, paílda e esquálida.                     Eu relutava em perguntar-lhes. Intimidade com mendigo é um negócio difícil.  Não por eles; por nós mesmos. Eles que me dissessem o que havia com o Roberto  quem, afinal, assumira comigo uma certa simpatia recíproca, nomeando-me seu padrinho. Todos ali sabiam.   
                                A mulherzinha mulata, olho de coruja, que faz intermináveis abdominais e parece ter coluna de seda, estava lá, também,  todo o dia ao cair da tarde, sempre no mesmo lugar, sentada sobre a grade do buraco do Metrô.       Já lhes contei que, estranhamente, ela ora pede, ora  recusa esmola. Só não deixa de me olhar com aqueles olhos  puxado pros lados e embaçados. Ela também não me disse nada.
                                              Criei, em mim,  uma espécie de ansiedade que me tornava   imperativo perguntar pelo meu afilhado, mas me faltava coragem.
                                          A última vez que eu o vira ele  estava semimorto, ferido no sobrolho; a boca dilacerada, espumando de cachaça. Não teve ânimo sequer de esboçar o habitual sorriso triste. A catinga emanada do seu corpo escuro tornara-se mais insuportável, como se isto fosse possível.
                                               - “V. está bem ?  Perguntei-lhe então.
                                      -"Que nada, meu padrinho, tô fudido. Levei um tombo, foi a cachaça que me empurrou. Fiquei uns dez dias internado no hospital do Campo de Santana". Ainda tentou sorrir...
                                           - "E aí, tá melhor agora, cara?
                                            “ Sei lá, padrinho; já não tenho forças pra pedir esmola, nem apetite pra comer”.
                             "-Te cuida Roberto!"; falei e desci rápido  as escadarias do Metrô como para me livrar de  um triste pressentimento.    
                                Afinal, num dia desses eu  criei coragem. O Comprido estendia a mão à beira da calçada, junto da estátua do centenário da Independência. O cheiro de mijo, subia-lhe pelo corpo magro e penetrava pelo meu nariz inflado, mesmo assim persisti. Saquei uma moeda e, enquanto a colocava na mão dele, fiz a pergunta  que havia  tanto tempo estava engasgada:
                                        -“E o Roberto, Comprido?.
                                          "O seu afilhado?
                                         - “É.. é.
                                    “Ele tava bebão e tomou um tombo na rua, ali perto da Biblioteca; bateu com a cabeça no meio-fio e morreu, dois dias depois, no Souza Aguiar. Foi recolhido e jogado na vala comum no emitério do Caju; este é o destino da gente que vive nas ruas”. O Comprido falava e ria, sem a menor compulsão.
                                       “Já até fui  até lá botar uma vela no meio das outras na intenção dele”.
                                       A morte do companheiro do lupem e da  miséria parecia ser, para ele, coisa corriqueira; teanto que não lhe vi nos olhos, nem na cara macerada qualquer sinal de emoção.  Virou-se:
                                     - “É meu companheiro, seu afilhado se foi!”.
                                       Eu que sou, confesso, movido por emoção e não resisto às lágriamas,  não pude me conter e o Comprido notou. Virou-se pra mim:
                                         -“Meu amigo, não chore por ele, pode atrapalhar a subida da sua alma pro céu”. E tornou a rir seu riso sem dentes.
                                                 VHCarmo - (outubro de 2007).

                           Este pequeno conto ( texto ficcional) complementa um anterior com o título "Meu afilhado", do meu livro de contos "Complexo do Alemão & outros contos".
 25.01.2011.
VHCarmo.

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