quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um ponto no Arpoador. (CONTO)

(Texto ficcional: qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência).

Os bancos de cimento, postos frente à Praia do Arpoador, concentram uma grande turma de idosos, pelas manhãs quando o sol vai escorrer suas luzes nas pedras e na espuma das ondas que ali se esbarroam. Há naquele recanto, onde duas correntes do mar se encontram, um estuário de lembranças e afirmação de vida.
Aos poucos, antes que o dia se adiante, as conversas convergem em temas os mais variados e confidenciais de façanhas e fracassos e até de intimidades familiares que abrem o livro do passado de cada um. Há ali uma intercomunicação que torna aqueles idosos amigos fraternos, cujo ponto de encontro, longe de salas íntimas, se dá em frente àquele belo mar do Arpoador.
Um freqüentador assíduo do local, exímio no mover das pedras do jogo de damas, desenhado nos tampos das mesas, figura esguia a assomar rugas no rosto branco e flacidez nos braços e pernas longas, é conhecido como Nandinho. Dentre todos, é a figura mais intrigante entre aqueles velhos. Há nele, em todas as suas expressões, algo que denota uma certa tristeza, um alheamento que, muitas vezes o leva a perder o jogo por distração, movendo mal a pedra decisiva.
Levado por uma curiosidade, devo confessar um tanto mórbida, fui tentando, muitas vezes naquelas manhãs, abrir o seu livro de intimidades. Movia-me, também, o desejo de integrá-lo naquelas confidências tão reconfortantes que fazem tão bem a mim e a todos aqueles idosos. Não foi tarefa fácil.
Numa daquelas manhãs em que a direta luminosidade solar se ocultava pelas volumosas nuvens escuras caminhantes pelo céu, ficamos a sós. A iminência de chuvas afastara os outros frequentadores. Nandinho me convidou caminhar em direção a Copacabana. Fomos; por uma parte do caminho silenciosos, mas notei que ele queria falar algo. Ao penetrar no Posto 6, deixei-o falar:
– Cara, eu fui milico. Um simples sargento, engajado após o serviço militar obrigatório, em 1959. Idas e vindas, da tropa passei aos setores burocráticos, especializando-me em organização de documentos, compilações em arquivos e me tornei um exímio datilógrafo. Quando do golpe de estado de 1964 que os militares chamavam de revolução eu servia no setor de segurança do Primeiro Exército. Em julho de 1969, empresários paulistas, militares do escalão superior do Segundo Exército e da Polícia Civil de São Paulo com a presença do governador Abreu Sodré, assistência de agentes americanos e de órgãos da imprensa paulista, em destaque a Folha de São Paulo, fundaram um órgão para repressão dos movimentos contrários ao sistema então vigente, órgão foi batizado de Operação Bandeirantes (OBAN).
-Aquele esquema, meu amigo, durou relativamente pouco, causado, provavelmente, pelo justiciamento de um empresário estrangeiro dirigente e financiador do órgão, assassinado em plena rua na capital de São Paulo e a fuga, para o exterior, de diretores da Folha. A Operação Bandeirantes com atuação preferencial naquele estado e no Mato Grosso, se viu superada por um órgão mais amplo o CODI-DOI – mais popularizado como DOI-CODI, que sistematizou a repressão em nível nacional. Este último órgão foi montado em todas as regiões militares em seus exércitos, supervisionado pelo então denominado Sistema de Segurança Interna, diretamente ligado à Presidência do país.
O Nandinho ia falando e íamos caminhando. Num dado momento - como o sol rompera as nuvens negras, afastando a chuva - convidou-me sentar com ele num banco em frente à praia, bem ao lado forte histórico de Copacabana; sentamos e ele continuou a falar:
- Acontece, amigo, que o meu Setor foi incorporado ao DOI do 1º. Exército e passei a secretariar e datilografar os depoimentos de presos no quartel da Rua Barão de Mesquita. Ali começou o meu drama. A minha sala era vizinha aos núcleos de torturas de presos para extração de depoimentos para facilitar entrega de outros “inimigos” procurados e para descobrir marcação de pontos de encontro. A turma atuante era altamente especializada na aplicação de torturas, vinha de treinamento propiciado pela CIA. Funcionavam: o Pau-de-arara, os choques elétricos nas extremidades e orifícios dos corpos dos torturados, o mergulho de cabeça nos tanques de água gelada (afogamento), o emparedamento do preso, em pé, sem movimentos até o desmaio; as geladeiras e o corriqueiro esbofeteamento do torturado algemado, para minar sua autoestima. Era tudo assistido por médicos militares para evitar a morte inesperada do preso sem proveito investigatório.
- Amigo, eu era obrigado a assistir a tudo aquilo. Homens, e às vezes mulheres, exangues e sem força, falavam coisas desconexas, nomes avulsos que dificultava até a transcrição datilográfica que, muitas vezes, era induzida pelos interrogadores, levando a muitas diligências sem sucesso. O pior, no entanto, era ouvir os gritos lancinantes dos torturados e o traslado pela minha frente de cadáveres daqueles que não resistiam à ferocidade de seus torturadores. Pois bem – me disse o Nandinho já então visivelmente emocionado – eu não resisti: a tortura me parecia esgotar-se em si mesma; sem sentido. No interrogatório de uma presa, mulher jovem - em minha frente -, o seu rosto estava totalmente desfigurado, suas vestes mal cobrindo os seus seios desnudos, mechas de algodão ensopadas de sangue sobre ferimentos; ali mesmo junto à maquina de escrever tive uma espécie de vertigem, entrei a vomitar e desmaiei. Acordei, ensopado de vômito, dentro de uma ambulância que me levou ao hospital militar. Ao me restabelecer fui exonerado das funções que exercia, mas obrigado a permanecer internado na galeria dos alienados. Ali fiquei por alguns meses sem contato com meus familiares. Após, fui submetido a interrogatórios intensivos. Coisas, sem sentido aparente, até sobre a minha vida particular, foram indagadas, inclusive sobre as minhas relações pessoais. Afinal, fui solto e avisado que seria vigiado e, se revelasse algo do que sabia, estaria sujeito a graves consequências. Eram ameaças claras sob as quais passei a viver.
- Cara, além de perseguido pelos gritos lancinantes dos torturados, aquelas imagens terríveis não se apartavam de mim. Quase não dormia e confesso a você que, até hoje, passado tanto tempo, durmo a poder de remédios. Fui afastado para a reserva remunerada. Sempre vigiado, perdi amigos e parentes. Somente a restauração da democracia em 1985 me proporcionou um pouco de paz que ora desfruto aqui com vocês.
-Agora, amigo, você pode entender porque não me abro lá no Arpoador. Não consigo fazer de outro modo; o jogo de damas, ao menos, amortece as minhas lembranças.
Ao terminar a sua narrativa, o Nandinho chorava convulsivamente com o rosto entre as mãos.
Victor H. Carmo – Janeiro de 2010.

Um comentário:

  1. Tio Hugo,
    E aí, tio? Arrebentando como blogueiro!
    Bjos
    Da sua sobrinha carioca/paulista Andréa

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